Volume I - O Abismo de Ness


 Capítulo 6 — As Vozes do Fundo

A névoa havia se adensado como se tivesse vontade própria. A lancha cortava lentamente as águas negras do lago, a proa iluminada apenas pelo farol pálido que lutava contra a escuridão que parecia engolir toda luz. As ondas pequenas e ritmadas batiam contra o casco como tambores fúnebres, e o motor roncava num tom cada vez mais irregular, como se também fosse afetado pela presença invisível que envolvia tudo.

 

No convés, Helena, Otávio e Marcos mantinham os olhos fixos na margem oposta — ou onde achavam que ela devia estar. Desde o ataque à casa da família MacAlister, todos os parâmetros da missão haviam sido quebrados. Não era mais uma investigação. Era uma fuga.

 

— O motor está esquentando demais — anunciou Marcus, com os olhos fixos nos painéis. — Estamos forçando demais com essa névoa densa. Algo está... drenando a energia.

 

— Isso não faz sentido — rebateu Otávio, apertando o rádio em mãos, ainda tentando sintonizar alguma frequência útil. O chiado metálico era cortado por ruídos indistintos — estalos secos, como de ossos sendo triturados, e sussurros em línguas que nenhuma das inteligências linguísticas do dispositivo conseguia traduzir.

 

Harding não dizia nada. O rosto dele estava pálido, coberto de suor frio. Desde que colocaram os pés de volta na embarcação, ele parecia... alterado. Seu olhar vagava, fixava-se na água por segundos longos demais. Seus dedos se contraíam involuntariamente. E, por duas vezes, Helena o viu balbuciando algo sem emitir som.

 

O rádio finalmente captou uma transmissão.

 

— —...zu'rha-tel...Abyssus kalgh’ra...ren egh tur—

 

A mensagem era repetida, cada vez mais audível, mas cada vez menos humana. O som reverberava dentro do crânio, e não nos ouvidos. Helena sentiu uma pressão no peito, como se a própria alma estivesse sendo puxada para baixo.

 

— Desliga isso — sussurrou, mas Otávio não reagiu.

 

Harding, de repente, começou a rir. Baixo, como se fosse algo íntimo. Um riso sufocado. Helena o encarou com pavor. Os olhos dele estavam completamente dilatados. Quando ela tocou seu ombro, ele virou a cabeça devagar, e por um instante, algo em seu rosto não parecia mais humano. As pupilas haviam se tornado oblongas. A pele sob os olhos tremia como se algo estivesse se movendo por baixo dela.

 

— Ele está... ouvindo — disse Harding, em um tom que não era o dele.

 

— Quem está ouvindo? — perguntou Marcus, tentando manter a voz firme.

 

Harding não respondeu. Apenas apontou para o lago, para a escuridão abaixo deles. E então falou, em tom cerimonial, como se estivesse recitando uma prece proibida:

 

— “Kalgh’ra não é o monstro. Kalgh’ra é o sono do mundo. É o último respirar do que afundou. Ele não ataca. Ele chama.”

 

O rádio explodiu num ruído ensurdecedor. Otávio o arremessou para longe, e Mira segurou Harding pelos ombros, sacudindo-o. Ele piscou rapidamente, como despertando de um transe, e começou a tremer.

 

— Eu... eu vi... Eu estava... — sussurrou, sem conseguir terminar.

 

Um som emergiu das águas. Um estalo viscoso. Como carne rasgando, mas... amplificado.

 

Algo estava vindo à superfície.

 

— Liguem o sonar! — ordenou Helena, tentando manter o controle.

 

O visor digital acendeu. Por um instante, apenas o reflexo do casco. Mas então... um deslocamento gigantesco sob a embarcação. Um corpo massivo, irregular. Parecia se mover em múltiplas direções ao mesmo tempo. Não era um animal. Era um amontoado de formas, como se algo morto estivesse sendo reanimado contra a própria natureza.

 

E então o ping do sonar desapareceu. Nada mais respondia.

 

As luzes da embarcação piscaram e se apagaram.

 

A escuridão total reinou por alguns segundos. E então, do meio da névoa, uma silhueta surgiu sobre a água. Alguém — ou algo — caminhava sobre a superfície do lago. Um vulto alto, encapuzado, que parecia flutuar. Em suas mãos, segurava uma lanterna cujos feixes não iluminavam o que tocavam, apenas escureciam o que já era escuro.

 

Marcus sacou a pistola, mas a arma parecia patética diante daquela presença.

 

— Não é possível... — sussurrou ele.

 

O vulto parou, a cerca de dez metros do barco. Do capuz, uma voz brotou — a mesma voz que falara pelo rádio, agora clara, agora terrena:

 

— “Vocês não o procuraram. Mas ele os escolheu.”

 

Um estrondo. A água ao redor da lancha explodiu para cima. Tentáculos translúcidos, ossudos, atravessaram o casco. Garras. Gritos.

 

Tudo se transformou em ruína, caos e escuridão.

 

Acordaram depois — Helena e Otávio — numa praia rochosa, a lancha destruída, Harding desaparecido.

 

E apenas uma palavra, escrita com sangue na lateral do motor ainda encharcado: “Despertado.” A luz do amanhecer filtrava-se fracamente pela neblina, tingindo de cinza os contornos da costa rochosa onde Otávio e Helena haviam sido arremessados. Os corpos estavam encharcados, os membros rígidos do frio, e o cheiro de água estagnada e sal amargo grudava-se à pele como uma segunda camada de carne morta.

 

Helena foi a primeira a se levantar, trêmula, tateando ao redor em busca de Marcus e Harding, chamando por eles com a voz rouca e ferida.

 

— Harding! Marcus, respondam!

 

Nada. Apenas o som do vento. Nenhuma resposta, nenhum sinal dele na praia.

 

Otávio, sentado entre algas e seixos, esfregava as têmporas com as mãos enlameadas. Seu nariz sangrava levemente, e havia hematomas em sua têmpora esquerda, provavelmente resultado do impacto contra a lateral da lancha antes de desmaiar.

 

— Isso não é só um criptídeo — disse ele com a voz embargada. — Isso... isso é culto. É entidade. É seita. Eu vi aquilo, Helena. Aquilo não era um animal.

 

Helena encarou o lago. O espelho d’água estava calmo agora, sereno até demais. Mas mesmo à luz do dia, algo nele permanecia errado — como se fosse espesso demais, como se ali estivesse algo em suspensão que tornava a água mais densa, quase oleosa.

 

— Nem Harding e nem Marcus se afogaria com facilidade. Se eles não estão mortos, foram levados — ela respondeu, e havia algo de gélido em sua voz, um fio de aço sob o tom controlado. — Vamos rastrear cada centímetro dessas margens. E depois, se for preciso, voltaremos ao fundo.

 

Otávio assentiu, mesmo que o terror em seu olhar dissesse outra coisa.

 

Avançaram pela costa, onde os fragmentos da lancha estavam espalhados como ossos: madeira partida, fibra de vidro lacerada, fios retorcidos como veias artificiais. Próximo a um pedaço do casco principal, Mira encontrou algo que gelou o sangue em suas veias: a jaqueta de Harding. Estava rasgada nas costas, como se garras a tivessem dilacerado de dentro para fora.

 

Dentro do bolso, uma fita cassete antiga, marcada com uma etiqueta borrada: “Arquivo de Feldman, 1976”.

 

— Isso é do Instituto — sussurrou Otávio ao ver a fita. — Esse arquivo é confidencial. Nunca foi liberado.

 

— Então por que Harding estava com ela? — perguntou Helena.

 

O silêncio respondeu.

 

Mais à frente, entre os juncos, descobriram o corpo de uma ave lacustre — talvez um mergulhão. Mas estava... seco. Como se tivesse sido drenado de dentro para fora. A pele colada ao osso, os olhos afundados. Era um cadáver velho, mas que ainda fumegava, como se tivesse morrido há segundos.

 

— Isso está se alastrando — murmurou Otávio. — E o que quer que esteja fazendo isso, não está apenas caçando. Está colhendo.

 

No alto das rochas que margeavam a praia, avistaram uma figura. Era o mesmo vulto encapuzado que surgira no lago, agora imóvel, olhando para eles. Quando Otávio sacou a arma, a figura já havia desaparecido — sem som, sem movimento, como se jamais tivesse estado ali.

 

— Ele está nos conduzindo — disse Helena, finalmente, após segundos de silêncio.

 

— Para onde?

 

— Para o fundo. Para o lugar de onde Kalgh’ra veio.

 

Na base da colina, onde os mapas apontavam a existência de uma caverna submersa, Otávio e Helena encontraram o que parecia ser uma entrada semicoberta por musgo, limo e pedras soltas. A vegetação ali era anormalmente densa. As árvores próximas tinham galhos retorcidos, como se crescessem em agonia.

 

Gravado na pedra da entrada, um símbolo rudimentar: um círculo envolto por espirais, atravessado por três linhas verticais.

 

— É o mesmo símbolo do Culto dos Três Abismos — disse Otávio, a voz embargada pela memória. — Eles desapareceram nos anos 70, depois que o lago Komsomolets engoliu uma expedição. Dizem que eram... adoradores de algo que vinha do fundo. De qualquer fundo.

 

— Isso confirma que Kalgh’ra não está restrito ao Lago Ness — concluiu Mira. — Isso é uma manifestação. Um avatar. Ele se alimenta de locais sagrados e de águas esquecidas.

 

Dentro da caverna, a escuridão era completa. Nem a luz artificial das lanternas conseguia perfurar mais do que dois ou três metros adiante. Mas o som... o som era constante. Gotejar. Pulsação. E, em certo ponto, algo que lembrava uma respiração profunda, úmida, abafada por toneladas de pedra e lama.

 

Descendo por túneis estreitos, depararam-se com inscrições nas paredes, esculpidas em padrão não humano. Pareciam vibrar, emitir sons agudos quando observadas por tempo demais. Otávio cobriu os olhos em certo momento e começou a gritar — uma crise breve, mas intensa, de pânico e desorientação.

 

Helena o sacudiu, tirando-o do transe.

 

— Está aqui — ele murmurou, em prantos. — Ele está aqui, bem abaixo.

 

— Eu sei. Vamos sair daqui agora. Precisamos de reforços. E de um ritual de contenção, antes que essa coisa escale para fora do lago.

 

Na saída da caverna, a névoa retornava, como se sempre os esperasse. Mas algo havia mudado.

 

O farol da ilha acendera por conta própria. A mesma luz opaca, âmbar, pulsando como uma íris gigantesca.

 

E, nas águas tranquilas do lago, uma sombra surgiu — imóvel, mas viva. Olhando de volta.

 

A criatura não atacaria novamente ainda. Porque já os havia marcado. Já os havia escolhido.

 

A caça tinha virado. Eles precisavam sair dali, antes que tivessem o mesmo fim dos amigos, seja lá qual tivesse sido este fim.

— Eu lembro que vi uns destroços de um farol quando nos aproximávamos dessa ilha, eu acho. – Disse Otávio esfregando as têmporas tentando voltar ao máximo a si.

Helena assentiu


 

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