Volume I - O Abismo de Ness
Capítulo 8 — O Coração da Água
A luz âmbar do lago pulsava em intervalos regulares, como um batimento artificial de algo que não deveria mais ter coração. Não era um reflexo, nem uma bioluminescência. Era um chamado. Um compasso que sincronizava não só as águas, mas as mentes daqueles que o contemplavam.
Otávio afastou-se da janela do farol com o rosto pálido. Seus olhos, por um instante, perderam o foco — como se a realidade tivesse oscilado entre duas versões de si mesma. Helena percebeu.
— Fica comigo — ela disse, pousando a mão sobre o braço dele. — Não cede. Não olha demais.
Ele assentiu, mas sua voz tremia ao responder:
— Aquilo... pulsa no mesmo ritmo do meu coração. Como se quisesse... assumir o controle dele.
Helena engoliu em seco. A névoa lá fora não apenas se adensava — ela se moldava. Espessava-se em formas quase-humanas, quase-vivas, que se moviam entre as árvores da margem como ecos com carne. Não havia mais fronteira entre o real e o simbólico.
Desceram do farol com passos cuidadosos. Helena carregava a espingarda. Otávio, os diários de Harding e a fita cassete protegida. A prioridade era clara: encontrar abrigo seguro, recuperar contato com a Quimera e solicitar evacuação — ou reforço.
Mas algo os aguardava ao pé do farol.
Era uma criança.
Ou algo com a forma de uma.
Vestia roupas antigas, encharcadas, coladas ao corpo magro. Seus olhos, negros e fixos, não piscavam. E da pele pálida escorria um líquido espesso, escuro, que não era água.
— Vocês ouviram o coração — disse a figura, com uma voz que não combinava com seu tamanho. — Mas ele ainda dorme. Vocês devem cantar. A canção precisa ser completa.
Helena ergueu a arma.
— Não te aproxima.
Mas a figura apenas sorriu. Um sorriso de dentes longos demais, infantis demais, como se fossem de leite — mas com marcas de mordida em cada ponta.
— O primeiro dos três já voltou — sussurrou. — O segundo escuta. O terceiro... ainda teme.
— Do que estás falando? — perguntou Otávio, engolindo o pavor.
— Do que foi acordado. Do que vive abaixo da memória do mundo.
A figura então virou-se e começou a andar em direção à mata, sem fazer barulho. Mas onde pisava, o chão apodrecia. E o lago, ao fundo, continuava a pulsar.
Helena respirou fundo.
— Se não pararmos isso agora, não haverá depois.
Otávio assentiu. Sabia que a próxima descida ao centro da anomalia não seria apenas física. Eles estavam prestes a cruzar um limiar — e talvez não retornassem com as mesmas mentes.
Antes de partirem, Helena inseriu a fita no gravador novamente. Recuou até a última faixa e pressionou o botão. Uma nova mensagem começou. Uma que ainda não haviam ouvido.
— “Se tu entraste onde Kalgh’ra respira, aceita que não sairás intacto. Mas há um selo. Uma palavra esquecida, enterrada sob a lama das eras. Ela fecha. Ela contém. Três devem pronunciar. Um deve se oferecer. E o quarto... o quarto é o eco.”
Helena desligou o gravador. O vento soprou, frio como metal.
Eles precisavam achar Marcus.
Antes que se tornasse o eco.
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