Volume III - A Sombra entre as Copas
Capítulo 3 – As Três Transgressões
A noite caiu sem anúncio.
Na clareira, a temperatura subiu ao invés de cair, e o ar tornou-se pesado, úmido como febre. Talia traçou um círculo ritual com sal e cinzas extraídas de um frasco marcado como “resíduo litúrgico – Lago Tumba”. Segundo registros antigos, esse composto era usado em cultos proibidos para isolar presença espiritual de origem animalizada.
Otávio vigiava o perímetro. Os sensores de proximidade estavam mudos. Mas ele sentia. Como no Ártico. Como no lago. Quando o mundo fica silencioso... é porque algo escuta.
— Ele não ataca por fome — disse Talia, fitando o corpo mumificado de Mbemba. — Cada vítima carrega um erro. E ele... pune.
Ela retirou um pergaminho plastificado da mochila. Tradução direta de um canto lusengo proibido, preservado apenas em fragmentos:
“Quando o homem quebra a palavra com sangue,
Quando o homem leva o fogo ao ventre da floresta,
Quando o homem come o irmão de quatro mãos...
O Bangenza vem.”
— Três transgressões — sussurrou Otávio. — Quebrar juramento. Profanar território. Canibalismo simbólico.
Iyeke, silencioso até então, apontou para uma marca na base da árvore sagrada. Uma faca de coleta francesa. De laboratório.
— Eles rasgaram esta árvore com instrumentos metálicos — disse ele. — Isso é mais que profanação. Isso é erro ritual.
— A primeira transgressão — confirmou Talia.
Ramos, o outro agente, aproximou-se. Encontrou pegadas ao norte da clareira. Passos frenéticos. Arrastados.
— Sobrevivente — disse. — Ou farsa.
Seguiram as marcas, que os conduziram a um abrigo improvisado de folhas e galhos. Dentro, um homem — branco, magro, tremendo. Roupas rasgadas. Era o Dr. Hubert Allais, chefe da missão botânica desaparecida.
Seus olhos, intactos.
Mas suas palavras... desconexas.
— Ele falou comigo — murmurava. — Em meu idioma. Dentro da minha cabeça. Ele me mostrou... o que fizemos. O que esquecemos. E... o que ele é.
— O que ele é? — perguntou Otávio, agachando-se.
Hubert o encarou.
— Ele é... a vergonha da floresta.
— Foste poupado. Por quê?
— Porque me arrependi — respondeu Hubert, com lágrimas nos olhos. — Mas os outros...
Ele apontou para o oeste.
— Levaram os corpos. Não os mataram. Ainda estão respirando. Mas... não estão vivos. Ele os guarda. Como... testemunhas.
Talia o examinou.
— A segunda transgressão foi a retirada da árvore sagrada. E a terceira...
— Eles caçaram um chimpanzé-alfa — disse Hubert. — Disseram que era apenas um estudo de comportamento. Mas... ele era velho. Solitário. Os caçadores disseram que o Bangenza aparece quando um igual é morto como inferior.
Talia fechou os olhos.
— A tríade se completou.
O chão vibrou levemente.
As folhas acima se moveram... sem vento.
E então, uma voz sussurrou, não do lado de fora, mas dentro da mente de todos:
“Eu não sou castigo. Eu sou o reflexo.”
Otávio caiu de joelhos.
— Ele não é um ser. Ele é um eco coletivo. Um primata moldado não pela evolução, mas pela culpa.
Do alto, olhos âmbar abriram-se novamente.
E os sons voltaram.
Mas não da natureza.
Daqueles que haviam sido levados.
Gritos humanos.
Misturados a rugidos.
Relatório da Célula D-África – acesso restrito
“A manifestação Bangenza não pode ser classificada como entidade animal ou sobrenatural em sentido comum. Trata-se de um constructo simbiótico entre lenda, consciência local e selva. Um espelho vivo para os pecados não enterrados. A única contenção viável é o reconhecimento do erro.”
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