Volume III: A Sombra entre as Copas
A evacuação do deserto foi abortada.
O último helicóptero enviado pela Quimera sobrevoou o platô de Ennedi por sete minutos antes de perder o contato. As últimas palavras gravadas pelo piloto foram:
“Não há mais chão. Não há mais sombra. Só... reverberação.”
No centro da distorção, Otávio e Talia estavam de pé.
Mas não sozinhos.
À sua volta, projeções da própria selva africana, das águas do Lago Ness e do gelo do Alasca surgiam e se desfaziam, como se o lugar onde estavam contivesse todos os lugares anteriores. Não como portais. Mas como ecos condensados.
Otávio compreendeu:
Talia chorava em silêncio. O tempo já não existia de forma linear. Ela ouvia sua infância. Ouvia sua morte. Simultaneamente.
E então, uma presença.
Helena.
No limite da dobra do céu.
Não mais humana. Mas ainda… ela.
Vestia uma veste preta e pálida, como sombra líquida. Seus olhos não brilhavam — apagavam.
Falou sem voz:
“Eu fui a primeira a carregar. Agora, sou o selo. Vocês... são o fecho.”
Otávio deu um passo à frente.
— Helena… o que fizemos?
“Abriram a boca que sempre existiu. E agora, o nome nos escreve. A realidade será reorganizada até que tudo o que resistir... seja útil à sua leitura.”
Do outro lado do mundo, a Quimera se reunia.
O Conselho Escarlate estava dividido.
— Eles carregam o nome — disse Malik Dray. — Não podemos permitir que saiam. Cada pensamento deles é uma sílaba viva. Cada palavra falada... pode ser replicada.
— Então... sugeres execução? — perguntou a Dra. Enríquez.
— Sugerimos reescrita.
Um projeto até então guardado: Lex Æterna.
Uma arma sem pólvora. Um vírus de linguagem. Capaz de apagar conexões neurais específicas através de pulsos sonoros simbólicos. Criado para ser usado contra entidades linguístico-miméticas.
Mas nunca testado em humanos.
Até agora.
—
Na dobra do deserto, Helena se aproximou de Talia.
“Tu foste argila. Mas agora és semente.”
E a tocou.
No instante do toque, Talia viu.
Tudo.
O primeiro homem que escutou o nome. O primeiro animal que tremeu sem saber por quê. A primeira palavra que tentou conter o que não tinha rosto.
E compreendeu.
Ak-Thur-El não quer existir.
Ele quer ser compreendido.
E enquanto alguém o lembrar, ele será.
Helena ergueu a mão uma última vez.
“Mas pode haver um último silêncio.”
—
Na base da Quimera, o dispositivo Lex Æterna foi ativado.
As coordenadas cerebrais de Otávio e Talia foram registradas.
Mas quando apertaram o botão…
Nada aconteceu.
Porque ambos… já não estavam ali.
Não em tempo. Não em espaço.
Foram absorvidos.
E tornaram-se palavras.
—
“Vocês acham que leem os monstros.Mas eles é que nos escrevem.”
Comentários
Postar um comentário