Volume III - A Sombra Entre as Copas
Capítulo 6 – As Vozes Sob as Folhas
Talia retornou sozinha.
A Quimera havia ordenado a suspensão temporária das operações terrestres na região, mas ela sabia: se esperasse pelos protocolos, tudo o que fora revelado cairia no esquecimento institucional. E o Bangenza... não perdoava o esquecimento.
Guiada por um velho mapa cerimonial da etnia Topoke, rumou em direção a um platô coberto por névoa permanente, a leste do rio Ubangi. Segundo a tradição, aquele era o Solo das Três Fomes — um local onde “os de antes dos homens” guardavam os nomes verdadeiros das coisas que andam.
Ela chegou ao entardecer.
O platô era circular, ladeado por pedras altas com inscrições arcaicas — símbolos que misturavam glifos, pictogramas e um padrão recorrente: o da cicatriz nos círculos. Mas agora, com ramificações que se estendiam como nervuras.
Ela se ajoelhou no centro e retirou da mochila uma máscara ritual de madeira, presente de um curandeiro congolês silencioso, que não aceitava moeda — apenas promessas de respeito.
Colocou a máscara.
E esperou.
O som da selva desapareceu.
Em seu lugar, um zumbido.
Como mosquitos. Mas dentro da cabeça.
E então, as vozes começaram.
Velhas. Sobrepostas. Sussurrando em línguas que ela conhecia academicamente, mas agora compreendia instintivamente.
“Tu caminhas onde os nomes dormem.”“Tu olhas com olhos limpos. Mas teu sangue carrega espelhos.”“Queres saber do Bangenza? Então escuta o antes do primeiro ruído.”
As pedras vibraram. A terra sob os joelhos de Talia afundou lentamente.
E ela caiu.
Não fisicamente. Mas em mente.
Um mergulho para dentro da memória coletiva da selva.
Viu um povo antigo. Sem palavra escrita. Mas com rituais complexos. Viu uma criatura surgir das matas, não criada por Deus ou espírito, mas trançada com culpa, com vergonha, com erro. Um primata que era feito daquilo que os homens deixavam de assumir.
E então viu três outros vultos.
Sem forma definida.
Um que nadava no escuro. Um que dormia nas pedras. Um que gritava com dentes de vidro.
Kalgh’ra. Amikuk. E outro ainda não visto.
O Bangenza caminhava entre eles.
Não como inimigo.
Mas como ponte.
Aquele que traduz o não dito. Aquele que molda o corpo do erro.
E então as vozes sussurraram juntas:
“Não existem criptoformas. Existem respostas.”
Talia despertou com o rosto molhado de orvalho.
Ao seu lado, uma pedra recém-virada.
Sobre ela, uma escultura em relevo: uma criatura humanoide de costas curvadas, com braços longos e olhos abertos — olhando para trás.
E abaixo, entalhada com precisão:
“O primeiro nome de todos os nomes.”
Talia pegou o bloco. Sabia o que carregava.
Era mais que uma escultura.
Era memória codificada.
E talvez... a chave que a Quimera nunca quis encontrar.
Anotação privada | Talia Kojo
“O Bangenza é o espelho. Mas espelhos refletem o que está por trás de nós. Se ele existe, é porque algo nos persegue. E talvez... só ele consiga pará-lo.”
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