Volume III - A Sombra entre as Copas

 


Capítulo 7 – A Primeira Sombra

Talia atravessou as portas do Setor Cinza da Quimera carregando a pedra gravada em tecido cerimonial. Dois agentes a seguiram por ordens do Conselho, mas não ousaram tocá-la.

Otávio, ainda mantido sob observação neurológica em ala restrita, havia mudado.

Não enlouquecido. Não inativo.

Mas diferente.

Ele passava horas em silêncio absoluto, traçando espirais com os dedos na parede, murmurando nomes de lugares que não existiam em nenhum mapa. Até aquela manhã.

— Talia... — ele sussurrou, ao vê-la entrar. — Eles não são fragmentos. São células. De algo maior.

Ela se aproximou e colocou a pedra sobre a mesa. Otávio a tocou — e congelou. Sua pupila dilatou. As espirais cessaram.

Ele olhou para cima, e sua voz parecia mais firme do que nunca:

— Estás pronta para ouvir o que eles temem?

Talia assentiu.

Otávio respirou fundo e começou:

— O Bangenza existe para lembrar.
— O Amikuk, para preservar.
— O Kalgh’ra, para abrir.

— Mas há um... que anda antes da lembrança.
— Que não fala. Que não se mostra.
— Porque todos os outros existem para que ele continue escondido.

Ele escreveu um nome no quadro. Um nome que não parecia pertencer a nenhuma língua conhecida. Uma sequência de sons intransponíveis. E abaixo, um símbolo: uma esfera dividida em seis segmentos, cada um marcado com traços que pareciam... órbitas.

— Isso apareceu no fundo da memória do Bangenza — disse Talia, abrindo seu caderno de campo. — Uma figura. Sem forma, sem rosto. Uma Sombra. Sempre nas costas dos outros.

Otávio tocou a própria nuca.

— É o que o Kalgh’ra via quando dormia. É o que o Amikuk queria lembrar. E é o que o Bangenza julga nos homens... porque os homens o viram primeiro.

Silêncio.

Talia compreendeu.

Não havia apenas entidades.

Havia hierarquia.

E aquela sombra — ainda sem nome pronunciável — era o ponto zero. O impulso primeiro. O que as selvas, os mares e os abismos tentavam conter à sua maneira. Uma entidade que não se manifestava pela carne ou pela mente, mas por presença bruta.

— Talvez... todas as criptoformas sejam sistemas imunológicos — murmurou ela. — Cada uma... uma tentativa de conter a aproximação dessa Sombra.

Otávio olhou para a câmera de vigilância no canto da sala. Sabia que estavam sendo ouvidos.

— Quando Helena carregou Kalgh’ra, ela abriu algo.
— Quando eu toquei o Amikuk, ele se moveu.
— Agora, com o Bangenza, temos o último sinal.

— E o que isso quer dizer? — perguntou Talia.

Otávio levantou-se pela primeira vez em semanas.

— Quer dizer que... ele acordou.


Relatório interno – Conselho Escarlate da Quimera

“A interseção simbólica entre as criptoformas Kalgh’ra, Amikuk e Bangenza sugere não uma origem comum, mas uma reação coordenada. As três entidades surgem, agem e desaparecem em padrões diferentes, mas sempre após atividades humanas que expõem ou tentam acessar locais de alto silêncio mitológico.”

“Há indícios de uma quarta presença, silenciosa, não manifesta, chamada nos rituais ancestrais apenas de 'A Sombra'. Ela não é venerada. Não é temida. É negada. E toda negação... é uma porta.”


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