Volume I - O Abismo de Ness
Capítulo 11 – O Corpo da Lenda
A manhã na Escócia nasceu sem cor. O céu era um espelho opaco, e o lago, um vidro sem reflexo. Helena acordou com o cheiro da terra molhada. Estava sozinha, mas não desorientada. Sabia o que havia ocorrido — e o que ainda não terminara.
Kalgh’ra havia recuado, mas não desaparecido.
Ele dormia, como dormem os deuses vencidos: à espreita.
Ela seguiu a trilha costeira em direção ao vilarejo mais próximo. No caminho, cruzou com homens da guarda local, que haviam detectado a explosão eletromagnética da noite anterior. Não os reconhecia, e tampouco confiava. Mas precisava de acesso à estação de pesquisa meteorológica — era o único lugar com sinal para contatar o Instituto.
No laboratório improvisado, Helena cruzou os dados do sonar residual com os mapas geotectônicos do lago. E então viu.
Uma estrutura óssea.
Um crânio.
Gigantesco.
Encravado sob a base do lago, a 82 metros de profundidade, envolto em sedimento e limo milenar. O sonar o registrava como uma elevação rochosa, mas ao analisar com mais precisão, revelou-se anatômico: mandíbula alongada, orifícios de pressão e dois olhos com mais de trinta centímetros de diâmetro.
O monstro de Loch Ness.
Não uma lenda. Uma carcaça.
— Ele não era Kalgh’ra. Era... o receptáculo. — murmurou.
O criptídeo não era a entidade. Era o invólucro. A carne moldada para conter o que dormia.
E essa carne havia se rompido.
No relatório que preparava, Helena rebatizou a criatura:
Críptide 09-Λ — “Coração de Kalgh’ra.”
Ela anexou os seguintes dados:
-
Espécie: Não determinada. Provável origem exogâmica interplanar.
-
Morfologia: Mescla de traços aquáticos e simbióticos, sugerindo adaptação intencional.
-
Posição histórica: O folclore escocês serviu de véu para aparições recorrentes do avatar da entidade. Desde o século VI d.C., pelo menos 14 avistamentos correspondem ao padrão anatômico da carcaça detectada.
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Situação atual: Estrutura óssea inerte. Possível perda de função hospedeira.
Mas uma pergunta pairava.
Se Kalgh’ra abandonou o corpo...
Onde está agora?
A resposta veio quando a guarda local a chamou para o cais da vila.
Um barco de pesca havia chegado à margem pela manhã.
Dentro dele, um corpo.
Marcus.
Olhos abertos.
Pele intacta.
Mas o rosto... sorria.
E nos olhos dele, Helena viu o que havia no abismo:
Não Kalgh’ra.
Mas sua lembrança.
Ela olhou para o lago uma última vez, e entendeu: o ciclo não fora interrompido. Apenas... adaptado.
Kalgh’ra agora caminhava em carne humana.
E a verdadeira criptoforma da Escócia não era uma fera no fundo do lago.
Era uma consciência à procura de novos corpos.
A Agência Quimera selou o caso sob o protocolo Λ-Submerso.
O mundo continuaria a acreditar no monstro.
E isso era bom.
Porque a verdade... era muito pior.
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