Volume I - O Abismo de Ness

 

Capítulo 10 — O Quarto Selo

O canto da terceira voz não soava como música, mas como uma distorção de tempo. Cada nota era uma dobra. Cada palavra, uma rachadura na realidade. E Helena sabia — ainda que não compreendesse como — que o ciclo estava completo.

Três haviam sido marcados.

Três haviam sido moldados.

Faltava apenas o quarto.

Otávio.

Ele caiu de joelhos na margem, agarrando a cabeça com as duas mãos. Não gritava — chorava sem som. Como se o mundo ao redor tivesse deixado de escutar.

— Ele está me puxando — balbuciou, trêmulo. — Está me mostrando coisas... que ainda não aconteceram.

Helena correu até ele, segurando-o pelos ombros, tentando ancorá-lo no presente.

— Não estás sozinho. Fica comigo. Lembra quem tu és.

Mas Otávio já não via Helena. Seus olhos estavam voltados para o lago, onde Marcus caminhava lentamente em direção à margem. Atrás dele, a água se abria como se temesse tocá-lo. Ao redor de seu corpo, uma aura âmbar pulsava — o mesmo tom do batimento no fundo do lago.

— Não o toquem — disse Helena, firme.

Mas era tarde.

Otávio se pôs de pé. E caminhou ao encontro de Marcus.

Os dois pararam a menos de um metro um do outro. Não falavam. Mas algo fluía entre eles — uma corrente mental, uma memória compartilhada, ou talvez... um pacto.

Então Marcus tocou a testa de Otávio com dois dedos.

E Otávio caiu.

Não morto. Não ferido.

Transformado.

Helena correu até ele, mas o corpo já não parecia o mesmo. O sangue ainda circulava. O coração ainda batia. Mas o olhar...

Era vazio.

Não de pensamento, mas de identidade.

— Ele se foi — murmurou Helena, ajoelhada ao lado do colega. — Tornaram-no... o eco.

A água atrás de Marcus borbulhou. Algo ascendia — não com fúria, mas com solenidade. Como uma presença aguardada. E então emergiu.

Kalgh’ra.

Não havia forma clara. Era tudo. E nada. Um amontoado de carne, osso, olhos, tentáculos, membros esquecidos de espécies extintas e estruturas que não pertenciam ao mundo físico. E no centro... um trono.

Feito de corpos.

Mas não mortos — corpos que respiravam. Choravam. Sussurravam.

E Marcus ajoelhou-se diante da entidade.

— A trindade cumpriu-se. O quarto aceitou. O véu foi rasgado.

Helena ergueu a arma. Sabia que era inútil, mas era tudo que tinha. Um gesto de resistência. Uma lembrança de humanidade.

Mas Kalgh’ra não atacou.

A criatura a olhou — se é que se pode chamar aquilo de olhar — e projetou uma memória.

Helena viu.

Ela mesma.

Muito antes.

Em outra era.

Outros nomes. Outras formas.

Mas sempre a mesma: a testemunha. A que carrega o fardo da lembrança.

E então entendeu.

Ela não era a oferenda.

Ela era a guardiã do ciclo.

A única que poderia fechar o selo.

Mas para isso... precisaria lembrar o nome esquecido.

A palavra que as pedras cantavam. Que os mortos sussurravam.

A que selava o abismo.

Kalgh’ra não era o nome da entidade.

Era o nome da abertura.

Do portal.

Do desespero.

O verdadeiro nome estava enterrado no som.

E Helena o sussurrou.

Th'rânavel.

O mundo tremeu.

O lago urrou.

E Kalgh’ra estremeceu, como se o próprio nome tivesse ferido seu ser.

Marcus gritou.

Otávio convulsionou.

E a névoa... recuou.

A realidade fraturou-se por um instante. O céu piscou. A terra gemeu. E a água... afundou, como se sugada por um ralo cósmico.

Helena foi arremessada para trás. Tudo se apagou.

Silêncio.

Quando acordou, estava sozinha na margem. A água estava calma. O farol, apagado. O colar com vértebras, sobre seu peito.

Otávio. Marcus. Harding.

Nenhum sinal.

Mas ela sabia.

O selo havia sido fechado.

Por agora.

Ela se ergueu, o olhar duro.

Porque Kalgh’ra não era uma entidade.

Era um ciclo.

E ciclos... retornam.


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