Volume I - O Abismo de Ness
Capítulo 9 — A Trindade Esquecida
A floresta à margem do lago se fechava ao redor de Helena e Otávio como um organismo vivo. Os galhos, entrelaçados como costelas, abafavam o som do vento. Os pássaros haviam emudecido — ou sido levados. A cada passo, o solo parecia pulsar sob as botas, emitindo uma vibração quase imperceptível que subia pelas pernas como febre rastejante.
A luz âmbar do lago não os alcançava ali, mas sua presença era sentida — como um olho fechado prestes a se abrir.
— Isto não é mais apenas o Lago Ness — murmurou Otávio, analisando os dados térmicos no tablet improvisado. — A frequência que vínhamos rastreando agora está ativa em mais de um ponto... é como se algo estivesse se espalhando sob o solo, como raízes.
— Ou como um coração buscando artérias — respondeu Helena. — E nós somos o sangue.
Avançaram até uma clareira onde as árvores pareciam ter morrido de dentro para fora. No centro, uma pedra ritual, coberta por líquen e símbolos desgastados. Mas o que chamou a atenção foi o que havia sobre ela.
Um colar.
Feito com dentes humanos e vértebras de peixe.
E ao lado, uma fotografia antiga.
Marcus.
Ao fundo, o mesmo farol onde haviam se refugiado.
Mas ele não olhava para a câmera — olhava para algo fora do quadro. Algo que o fazia sorrir de um jeito que Helena não reconheceu.
— Isso... não pode ter sido tirado agora. Este papel... está seco — sussurrou Otávio.
Helena se ajoelhou diante da pedra. Pegou o colar, relutante, e sentiu uma vibração fria subir pelo braço. Por um instante, imagens atravessaram sua mente: Marcus de pé diante de uma água negra, falando em uma língua sem som. Um círculo de três mulheres de cabelos longos e olhos escuros. Um altar de carne viva. E no centro, o nome que agora pesava sobre tudo:
Kalgh’ra.
— Ele foi levado... não como vítima. Como iniciado — disse ela, com a voz tensa. — Eles precisam de três. E ele é o segundo.
Otávio cambaleou para trás.
— Três? Nós temos Harding. Temos Marcus. E agora estão vindo por ti.
Helena não respondeu. Seus olhos estavam fixos em algo além da clareira. Um vulto. Feminino. Vestido com roupas do século XIX, molhadas, apodrecidas, mas ainda elegantes. Ela não caminhava — flutuava, como se o chão não a reconhecesse como parte do mundo.
A mulher parou a poucos metros, apontou para Helena, e então murmurou:
— O selo está quebrado. O eco será moldado. A porta abrirá. A carne será véu.
Helena deu um passo à frente.
— Quem és tu?
A mulher não respondeu. Apenas girou sobre si mesma, e à medida que se virava, partes do corpo sumiam — rosto, mãos, pele — até que restou apenas a voz, repetindo uma frase que se infiltrava no ar como veneno:
— Três respiram, um retorna. Três veem, um se cala. Três chamam... e o quarto nasce.
A figura se dissipou como cinza.
Helena caiu de joelhos.
— Nós somos o ritual — murmurou. — Nós somos as palavras.
— E Kalgh’ra é a resposta — completou Otávio.
Na borda da floresta, o lago escurecia ainda mais. O céu estava limpo, mas as águas ferviam em círculos concêntricos. No centro, uma figura ergueu-se lentamente da superfície: Marcus. Nu, olhos fechados, o corpo marcado com símbolos que não haviam sido tatuados, mas gravados na carne como ferro em brasa.
Atrás dele... algo se movia.
Grande. Antigo. Sem forma. Com olhos.
Helena gritou o nome dele. Marcus abriu os olhos. Sorria.
Mas não era ele quem sorria.
E atrás de seus ombros, a terceira voz começou a cantar.
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