Volume II: A Boca de Gelo


 

Capítulo 4 – A Boca sob o Gelo

A escotilha de aço rangeu quando Helena e Otávio cruzaram o limiar entre o mundo humano e o ventre do gelo. As luzes dos capacetes cortavam a escuridão, revelando paredes compactadas por séculos de pressão. Não era uma caverna comum — era um canal esculpido. Orgânico demais. Curvado demais. Como se algo tivesse passado... muitas vezes.

O caminho descendia por rampas de gelo polido. As superfícies apresentavam marcas circulares, como ventosas disformes pressionadas com força desumana. De tempos em tempos, Helena tocava o gelo com o microcoletor e observava os dados.

— Altas concentrações de amônia. Traços de queratina... e melanina — ela disse. — Isso aqui foi tocado por algo vivo. Grande. Muito grande.

Otávio caminhava ao lado, monitorando os sinais neurosinápticos captados pelos gravadores mentais. O traçado estava limpo. Mas o próprio aparelho indicava algo estranho: havia outro campo de leitura cerebral na área.

— Estás vendo isso? — perguntou, pasmo. — Tem uma frequência de padrão neural... aqui dentro. Mas não tem corpo. Está na parede.

Helena se virou.

— A parede... pensa?

— Não. Ela espelha. Ela está repetindo padrões. Como se gravasse memórias.

Continuaram descendo até que a rampa terminou abruptamente numa abertura elíptica.

A Boca.

Era assim que ela parecia: uma mandíbula circular, com bordas irregulares e salientes, como dentes congelados. O chão dali em diante era mais quente. Vapor subia entre as frestas.

E no centro da câmara...

Algo se movia.

Devagar.

Como uma medusa gigante envolta em gelo parcialmente derretido. Braços longos, finos, e uma “cabeça” sem face definida, com texturas que lembravam rochas vulcânicas e carne marinha ao mesmo tempo. Ele estava parcialmente enterrado no gelo, pulsando, vivo — mas dormente.

O Amikuk.

Mas Helena percebeu outra coisa.

Ele não era inteiro.

Ao redor da criatura, dezenas de tubos naturais se estendiam — como cordões umbilicais — conectados às fendas superiores do túnel. E nas extremidades deles... corpos.

Humanos.

Muitos.

Imersos no gelo, mas em posição fetal. Alguns parcialmente vestidos com roupas modernas. Outros nus, com aparência antiga. E todos... tinham o mesmo rosto.

Rostos que Helena reconhecia.

O rosto de Harding.

O rosto de Marcus.

O rosto dela.

Otávio recuou dois passos.

— Helena... isso... não é reprodução. É... clonagem por ressonância.

— Ele está colhendo perfis. Personalidades. Fragmentos. Criando versões para ocupar depois.

— Isso é um útero de memória.

Do centro da Boca, o Amikuk ergueu lentamente um dos braços. Não em ataque. Em saudação.

E Helena ouviu.

Não com os ouvidos.

Com o pensamento.

“Tu desces, filha do véu. Foste marcada pelas águas do primeiro. Agora, pertences ao segundo. Kalgh’ra abriu o caminho. Eu, Amikuk, sou a carne do fundo. Tu és a palavra da superfície.”

Ela cambaleou.

Otávio a segurou, mas também tremia. As paredes da câmara começaram a vibrar em um cântico subaquático, como se a criatura estivesse... cantando.

“Aceita a forma. Ou carrega a lembrança.”

A escolha.

Ser portadora. Ou guardiã.

Helena olhou para Otávio.

— Ele quer... que eu me una. Para levar a memória dele de volta ao mundo.

Otávio respondeu com a voz embargada:

— E se recusares?

A criatura rugiu sem som. O gelo tremeu. Os corpos ao redor começaram a abrir os olhos — todos ao mesmo tempo.

Helena respirou fundo.

E escolheu.

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