Volume II: A Boca de Gelo
Capítulo 3 – Os Que Vestem a Pele
As luzes da Base Borealis piscaram com um estalo elétrico. A temperatura caiu quatro graus em menos de um minuto — sem alteração externa. Era como se algo sugasse o calor de dentro, como se o frio estivesse sendo exalado pelas próprias paredes.
Otávio trancou os corredores com os selos físicos de contenção, camadas de aço magnetizado reforçadas com códigos cerimoniais da Seção Tibetana da Quimera. Aquilo havia contido um hospedeiro de Kalgh’ra, pelo menos temporariamente. Mas com Amikuk... eles não sabiam o que enfrentavam.
Helena mantinha a espingarda apontada para a entrada. O som das batidas cessara. Mas agora... eram passos.
Múltiplos.
Arrastados.
Não sobre a neve — sob ela.
O chão vibrou como se pulsasse. E então uma rachadura surgiu na parede lateral da base. Pequena. Mas suficiente para vazar um cheiro intenso e orgânico: alga, gelo antigo... e sangue.
Helena se aproximou e apontou a lanterna pela fissura. O que viu era impossível.
Um rosto.
Idêntico ao de Marcus.
Olhos abertos.
Congelados.
Mas sorrindo.
Ela cambaleou para trás.
— Eles não só vestem a carne... eles a copiam — sussurrou. — Com perfeição.
Otávio ampliou os dados térmicos do túnel externo. Os quatro sinais se aproximavam. Temperatura interna constante: 2,1°C. Umidade: 94%. Batimentos cardíacos: ausentes.
— São corpos que não morrem — disse ele. — A carne... funciona, mas não vive. Como se fosse... vestida.
— Como uma roupa — completou Helena. — Amikuk não tem forma fixa. Ele... ocupa. Ele preenche.
O alarme disparou no setor leste.
Corte de energia. Porta de acesso comprometida.
Eles correram até a sala de monitoramento.
A imagem mostrava o laboratório B.
Uma mulher. Alta. Pele muito pálida. Sem roupas.
Ela caminhava entre os equipamentos, oscilando como se ainda aprendesse a usar as pernas. Seu cabelo era longo, escuro, e seus olhos... vazios.
Otávio reconheceu.
— Helena... essa é Dra. Lain.
— A oceanógrafa desaparecida da equipe russa.
— Sim. Mas ela morreu em 2009. Temos o laudo oficial. Enterro em Vladivostok.
Helena estreitou os olhos para a tela.
A figura virou lentamente e encarou a câmera.
Sorriu.
E sussurrou algo. Sem som. Mas seus lábios eram legíveis.
“Eu sou a lembrança.”
E então... desapareceu da imagem.
— Eles estão nos testando — disse Helena. — Enviando fragmentos. Como larvas sondando o hospedeiro.
Otávio acessou os mapas geológicos da região. As fraturas se expandiam. Linhas sísmicas rasgavam o pergelissolo como veias abertas. E no centro... uma cavidade recém-formada.
Uma câmara natural.
Ou construída.
— Temos que descer lá — disse Helena. — Encontrar o núcleo. Antes que isso se espalhe.
Otávio hesitou.
— E se o que está lá não for o Amikuk?
— Então é pior.
Helena ativou o protocolo de incursão 09-Φ, o mesmo usado nas ruínas de Ness. Dois trajes térmicos. Câmeras frontais. Dardos neuroestáticos. E um microgravador mental — aparelho experimental que registrava padrões de pensamento para análise pós-incursão.
Porque às vezes... a informação mais valiosa morre com o agente.
Quando saíram pela escotilha norte, a neve não caiu. Pairava. Como se não ousasse tocar a terra.
E, sob seus pés, o gelo estalava.
Não de fraqueza.
Mas de respiração.
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