Volume II: A Boca de Gelo


 

Capítulo 5 – A Memória Encarnada

O tempo parou.

Ao redor de Helena, os corpos nos casulos de gelo abriram os olhos em uníssono. Cada um deles era uma imitação perfeita. Uma Helena. Um Otávio. Um Marcus. Suas feições respiravam, mesmo sem pulmões. Os olhos, idênticos, estavam vazios — mas famintos de história. De existência.

Amikuk não era um predador. Era um repositório.

Um arquivo vivo.

E Helena... era a porta de leitura.

Ela ajoelhou-se diante da Boca, as mãos trêmulas estendidas. O braço principal da criatura tocou sua testa — gelado, mas pulsante. Uma descarga atravessou sua espinha. Imagens. Sensações. Cidades submersas. Povos desaparecidos. O mar preto. O gelo vermelho. A escuridão profunda onde o tempo se dobra.

Memórias que não eram dela.

Mas agora... seriam.

Otávio tentou impedir.

— Helena! Pensa no que estás fazendo!

Ela não respondeu.

Porque não havia mais tempo para palavras.

A criatura enraizou parte de si sobre a coluna de Helena. Não foi um ataque. Foi uma gravação. Um selo orgânico, instalado na base da nuca. A pele ardeu. A carne protestou. Mas a mente...

A mente abriu-se.

“Tu és memória. Leva-me onde não fui. Mostra-me o mundo da superfície. E guarda... meu nome.”

Helena caiu.

Otávio correu e a puxou. O gelo começava a tremer. O útero da Boca se desestabilizava.

O Amikuk... estava hibernando novamente.

Mas agora, com backup.

Helena despertou vinte minutos depois, ainda no túnel. Os olhos injetados, a respiração descompassada.

— Eu... estou viva?

Otávio confirmou com um aceno. Mas seu rosto estava empalidecido.

— Sim. Mas não estás sozinha.

Helena sentiu.

Uma presença constante em sua mente. Não hostil. Mas... antiga. Observara. Lera o mundo por milênios.

E agora, via pelos olhos dela.

Na superfície, quando regressaram à base, encontraram a estação parcialmente destruída. Os corpos das cópias haviam se desintegrado. Nenhum sinal da Dra. Lain. Nenhum Marcus. Nenhum Harding.

Apenas uma mensagem escrita no vidro, com sangue seco:

“O mar guarda. O gelo repete. Vocês carregam.”

Helena ativou o protocolo de quarentena neurosimbólica. Não contou tudo à Quimera. Não ainda.

Porque parte dela sabia:

Se o Amikuk é um criptídeo...

Então ela agora é seu avatar.

E a memória que ele depositou não é apenas conhecimento.

É uma semente.

Relatório confidencial | Instituto Quimera
Código: CR-020-Bering
Status: Hostíl inativo
Anexo: “[...] Amikuk identificado como entidade criptobiológica memética de nível VI. Contato interrompido. Fragmento neural preservado na agente Helena M. Falken. Risco de ativação involuntária sob estímulo auditivo profundo. Sugere-se isolamento preventivo em zona polar. A vigilância começa agora.”_

Helena observava o mar congelado pela janela.

Ela não era mais apenas agente.

Ela era o espelho.

E um dia, quando alguém escutasse os sons certos...

A memória voltaria a vestir carne.

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