Volume II: A Boca de Gelo
A superfície congelada do Estreito de Bering refletia a luz tênue dos drones como espelho rachado. O silêncio era espesso, quebrado apenas pelo zumbido das hélices e pelo estalido rítmico das fissuras se movendo sob as rodas da sonda térmica.
Helena e Otávio observavam os monitores em tempo real. O novo modelo de drone — Charybdis II, uma versão adaptada para escavação e leitura sísmica de camada profunda — avançava a 70 metros do ponto de fratura central. As imagens transmitidas mostravam gelo maculado. Como se algo tivesse derretido o interior e depois o reconstruído.
— Isso aqui... não é fusão natural — murmurou Otávio, ampliando um dos registros. — São túneis. Ramificados. Curvos demais para serem rachaduras. E há escoriações. Como se... algo tivesse rastejado por dentro.
Helena não desviava os olhos da imagem. O interior dos canais era escuro, mas reflexos visíveis marcavam algo metálico, como secreções minerais. Porém, o detalhe mais inquietante apareceu quando a sonda ativou o sonar de proximidade.
— Helena... — disse Otávio, a voz quase sumindo.
Na tela, uma forma.
Ovalada.
Múltiplos braços dispostos em espiral.
Imóvel.
Mas não inerte.
— Tem oito apêndices, mas não são tentáculos marinhos — completou Otávio. — São articulações. Com segmentos ósseos. Isso... anda.
— Ou rasteja — murmurou Helena.
Ela recuou da tela. O frio da base parecia mais denso, mais próximo.
Então o drone parou.
Sem falha elétrica. Sem sobrecarga.
Ele havia batido em algo.
Na gravação térmica, um contorno.
Humanóide.
Pele visivelmente nua, apesar da temperatura externa ser de -38°C. Um homem, aparentemente. Parado. Com os olhos abertos.
— Helena... ele está vivo?
A figura piscou.
— Não pode estar... — sussurrou ela.
Mas o que veio a seguir calou ambos.
O homem sorriu. Deu um passo. E desapareceu em meio ao gelo — como se nunca tivesse estado ali.
Na tela, uma última interferência: um símbolo esculpido no túnel, que o drone captou antes de cair.
Duas palavras: “Voltei. Feldman.”
Otávio caiu para trás, pálido.
— Feldman morreu em 1983... durante o evento de Komsomolets. Isso está nos arquivos selados. Ele foi arrastado para o gelo.
Helena sentou-se devagar.
— Então isso não é apenas um ser. É uma emulação. Está criando corpos. Revestindo memórias. O Amikuk... não caça como bicho. Ele se infiltra como eco.
Do lado de fora, uma sirene disparou. Os sensores de movimento captaram atividade ao redor da base. Quatro sinais. Humanos.
Mas nenhum deles tinha batimentos.
Helena armou a espingarda de nitrogênio hipergelado. Otávio ativou os protocolos de contenção.
— Estão vindo debaixo da neve — ele disse.
Helena fixou os olhos na porta de aço.
— Kalgh’ra se infiltrava na mente.
— E Amikuk?
Ela respondeu sem desviar o olhar.
— Ele se veste com a carne.
E então, algo bateu do lado de fora.
Uma batida leve.
Rítmica.
Como se pedisse... para entrar.
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