Sussurros da Terra Podre
A terra tá úmida de novo, o que parece um milagre depois de tantos anos de seca interminável, mas é só mais um sintoma do que restou de um mundo que nem se lembra mais de si mesmo. A gente fugiu para o subsolo muito antes, quando o céu se desfez e a terra se encolheu sob o peso de um calor insuportável. O sol desapareceu, não por nuvens escuras, mas porque a própria luz parecia se distorcer, como se o céu tivesse perdido a coragem de brilhar. A vida virou um pesadelo de calor, cinzas e desespero, e nós nos enterramos, acreditando que, no fundo, o que restava da civilização talvez fosse o que nos manteria vivos. Mas, todos sabiam, ninguém voltaria para a superfície e viveria bem de novo.
Agora, após tanto tempo, o chão úmido, pegajoso, nos lembra de como as coisas eram antes. A umidade inunda os túneis, enferruja as velhas máquinas de ventilação, que antes eram as nossas únicas esperanças de encontrar um pouco de ar fresco. Mas o ar que sai delas agora é denso, com um odor nauseante, como se o próprio planeta estivesse exalando sua decadência. O cheiro é como o de carne apodrecida, algo mais podre que o nosso medo. Eu sinto o gosto amargo do ar, sinto a pele arranhar, cada passo ressoando com o som da lama se agarrando às minhas botas, tentando me puxar para baixo, como se a terra quisesse me engolir novamente.
À medida que nos arrastamos por esse submundo, o medo de nunca mais ver a luz do dia se mistura com algo mais. Algo que está embaixo de nós, algo que nunca saímos do subsolo por medo de encontrar. Eles dizem que a terra, mesmo sem o sol, ainda sente dor. E essas dores nascem, se contorcem, se transformam em monstros que agora habitam os esgotos e galerias subterrâneas.
Eu me lembro da história da carne dilacerada que um de nós encontrou, uma pele que parecia humana, mas diluída como se tivesse sido queimada até virar pó. Eles diziam que os corpos não apodreciam mais, não de maneira natural. Em vez disso, eram consumidos por uma fome que a terra havia cultivado, uma fome insaciável, eterna, e que nós, de algum modo, passamos a compartilhar. Os primeiros desapareceram, outros começaram a ter os corpos deformados, as carnes inchadas de maneira grotesca, como se o próprio ambiente estivesse querendo nos transformar em algo diferente, algo monstruoso.
E não foi só isso. Quando a terra ficou úmida, não foi apenas o solo que se molhou. As paredes do subsolo começaram a sangrar. Não sangue humano. Algo mais. Um líquido escuro e espesso, pegajoso, com o cheiro de carne putrefata misturado com algo mais, algo que nunca consegui identificar completamente. O líquido escorria pelas paredes e se acumulava no chão, formando poças profundas que sugavam os pés como se tivessem vida própria.
Nós tentamos resistir, tentamos evitar o que sabíamos ser inevitável. Mas quando os corpos começaram a se distorcer, a se fundir, quando a pele se desprendeu e se agarrou ao que restava de ossos, a sensação de que estávamos sendo consumidos pela própria terra se tornou impossível de ignorar.
A carne começou a sair de dentro de nós, de dentro de cada um, de forma lenta e dolorosa. Os gritos de quem ainda restava ecoavam pelos túneis, abafados pela umidade. Eu vi um de nós, já quase irreconhecível, arrancando pedaços de carne do próprio braço com os dentes. Não para se alimentar, mas para alimentar algo mais. Algo que nos arrastava para a insanidade.
Agora, a única coisa que sabemos é que a terra não está apenas úmida. Ela está viva. Ela quer mais de nós, mais do que simplesmente a nossa carne. Ela quer a nossa dor, o nosso desespero, a nossa humanidade. E nós sabemos que, mesmo se conseguirmos escapar para a superfície, ela nos seguirá, nos encontrará, porque somos parte dela agora. Nós nunca mais seremos livres. A terra não nos deixa ir.
E assim, nos arrastamos pelos corredores, buscando o último vestígio de humanidade que possa restar. O ar é denso demais, e as sombras parecem se mover por conta própria, como se estivessem nos vigiando. Os corpos mutilados e deformados não são mais lembranças, são presenças. A terra nos engole, e nós a alimentamos com a nossa carne e com o que ainda resta de nossas almas. O sol nunca mais voltará, e nós seremos as sombras daquilo que um dia fomos.
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