Volume I - O Abismo de Ness

 


Capítulo 1 – O Alerta Inicial

O telefone fixo da sala de operações tocou três vezes antes que alguém atendesse. O som grave e retrô quebrava o silêncio denso da Agência Quimera — um silêncio feito não da calma, mas da vigilância. As paredes de concreto bruto e aço polido, enterradas a doze metros abaixo de um hangar esquecido nas montanhas da Baviera, refletiam a luz fria dos painéis de LED que nunca se apagavam.

Helena interrompeu a leitura de um dossiê e ergueu os olhos. Estava há quase quatro horas decifrando símbolos linguísticos em runas pictográficas oriundas da Groenlândia, mas algo no tom daquele toque lhe causou uma inquietação involuntária. Alistair, sentado à cabeceira da longa mesa oval de operações, ergueu a mão, sinalizando para que ninguém atendesse. Ele mesmo pegou o fone.

— Alistair. — Sua voz era seca, cortante, como uma pedra velha.

Ouviu em silêncio por quase um minuto, sem dizer mais que três monossílabos espaçados. Seus olhos não piscavam. Ao fim, ele colocou o fone devagar no gancho. Puxou uma pasta preta marcada apenas por uma letra grega desenhada em giz branco: Φ.

— Temos um chamado — anunciou. — Escócia. Margens do Lago Ness.

Marcus, o combatente tático, ergueu uma sobrancelha. Estava encostado na parede, braços cruzados, camisa térmica preta colada ao corpo musculoso e os olhos sempre semicerrados.

— “Nessie”? Isso é sério?

— É — respondeu Alistair, sem humor. — Três corpos encontrados nas últimas 72 horas. Mutilações incompatíveis com fauna local. Nenhuma prova de embarcações ilegais ou ataque de grandes predadores.

Otávio, sentado diante do computador central, já digitava com voracidade. Ele era o cérebro técnico da equipe, doutor em biologia anômala e ex-professor expulso por “conflito ideológico com o comitê científico internacional”. Tradução: dizia a verdade demais.

— Estou vendo as imagens. — Seu rosto empalideceu. — Isso... isso não é um ataque. Os corpos foram dispostos. Um dos cadáveres está com a espinha torcida em ângulo espiral. Ritualístico?

Helena levantou-se, prendeu os cabelos num nó rápido e foi até o projetor. As fotos se espalharam na tela em altíssima resolução. Uma mulher com o tórax aberto, os pulmões retirados com precisão cirúrgica e pendurados em forma de asas sobre as costas. Um homem com os globos oculares removidos, mas a cavidade preenchida com água e algas. Um idoso com as mãos amarradas com cabelos humanos.

Alistair continuou:

— Autoridades locais acreditam que se trata de ação de um culto. A Agência recebeu um alerta codificado diretamente do MI-6, sugerindo que investigássemos em campo. Há “interferência ambiental anômala” nos arredores do lago.

Helena se aproximou do painel e apontou para uma leitura espectromagnética.

— Isso aqui… essa distorção... parece ressonância de baixa frequência. Vibração abaixo de 20Hz. Sabe o que mais produz isso? Sons de baleias… ou terremotos. Mas aqui está vindo da água rasa. Constante. Como um batimento.

Otávio aumentou o zoom em um ponto escuro no sonar. — E esta sombra aqui… não é uma formação geológica. Está se movendo.

Marcus soltou um suspiro pesado.

— Então vamos até o lago caçar o bicho-papão.

— Não — respondeu Helena. — Vamos até lá impedir que ele suba.

Alistair pousou as duas mãos sobre a mesa.

— A partir de agora, protocolo ativo. Preparação total. Equipamento submerso, armas de dispersão, drones de reconhecimento noturno e traje seco. Viajamos às 03h00. Equipe completa. Missão Quimera-09: criptoforma lacustre não identificada com possibilidade de projeção ritualística hostil.

Tashi, o contato local designado pelo setor de culturas e rituais, já os esperava na Escócia. Monge retirado, falava doze línguas mortas e duas vivas com fluência. Fora ele quem dera o alerta à inteligência britânica ao ouvir cânticos antigos nos arredores de Fort Augustus — vozes femininas cantando versos que os monges do Himalaia diziam pertencer a uma entidade conhecida apenas como Aquela-que-veio-com-a-névoa.

Antes de saírem, Helena passou por uma das paredes de vidro que guardavam os arquivos mais antigos. Dentro, uma caixa de chumbo marcada com um lacre vermelho. Sobre ela, uma etiqueta com uma única palavra:

Ness.

Ela virou-se para Alistair.

— Sabias que existia uma pasta selada com esse nome?

— Abri há dez anos — respondeu. — E fechei. Porque o que vi... não era um monstro. Era uma fenda.

— Vamos abri-la de novo?

Alistair assentiu, os olhos mais cinzentos que de costume.

— Vamos sim. Mas dessa vez... vamos entrar nela.

O jato particular da Agência Quimera decolou exatamente às 03h00 do aeroporto militar de Oberpfaffenhofen, com rota direta para Inverness. O céu da madrugada era um poço escuro de nuvens adormecidas. Dentro da aeronave, o silêncio reinava. Cada um dos membros da equipe sabia o que enfrentaria, mesmo sem saber o que enfrentaria.

Helena consultava as imagens de satélite da região, sobrepondo mapas históricos com leituras térmicas recentes. Um ponto frio emergia com força no sonar: uma área próxima à Abadia de Fort Augustus, fechada ao público há duas décadas. O frio, no entanto, não era meteorológico. Era espectral.

Marcus limpava a lâmina de uma faca de combate com a mesma concentração de um monge em oração. Sabia que armas de fogo muitas vezes eram inúteis contra criptoformas. Mas lâminas… lâminas sempre cortavam, até o invisível.

Otávio finalizava a calibração de um dos drones aquáticos. Batizado de Charybdis, o aparelho era equipado com câmeras infravermelhas, sonar ativo e medidor de radiação gama. Otávio falava com ele em voz baixa, como se o aparelho fosse vivo. Talvez fosse. Na Quimera, quase tudo era.

Quando aterrissaram, Tashi já os aguardava numa van preta sem identificação. O ex-monge vestia um casaco impermeável e mantinha o capuz abaixado, cobrindo parte do rosto marcado pelo tempo. Seu olhar, porém, era de quem já vira demais — e esperava ver mais ainda.

— Os cantos começaram três noites atrás — disse Tashi em tom grave. — Apenas durante a névoa. Mulheres cantando na língua dos mortos, à beira da água. A névoa vinha do centro do lago. Nunca da floresta.

— Quantas vozes? — perguntou Helena.

— Três. Sempre três.

— As Três Irmãs — murmurou Alistair. — A tríade da vigília, da abertura e da oferta.

Otávio congelou.

— Tem certeza?

— Sim — respondeu Tashi. — Eu ouvi. E vi também. Um corpo flutuando, envolto em algas como se estivesse embrulhado em sedas verdes. Os olhos abertos. E o que vi atrás dele…

O silêncio que se seguiu disse mais do que qualquer palavra.

Seguiram até a base avançada improvisada nas ruínas de uma casa de barcos abandonada, à margem norte do Lago Ness. Os equipamentos foram descarregados com eficiência militar. Alistair cuidava da segurança perimetral. Marcus afixava sensores de movimento. Helena preparava a estação de análise biológica. Otávio mergulhava nos dados com olhos famintos. E Tashi… apenas observava. Como se esperasse que algo, ou alguém, saísse da névoa.

Ao entardecer, a névoa chegou. Não desceu — subiu. Veio do centro do lago, como vapor que não obedecia leis físicas. A temperatura caiu sete graus em três minutos. E então… o canto.

Três vozes. Femininas. Antigas. Uma melodia arrastada, circular, que parecia não terminar nunca. E cada nota era como uma unha sendo arrastada no fundo da alma.

Helena ativou os gravadores. Marcus saiu da cabana com a arma em punho. Tashi ajoelhou-se no chão e começou a entoar mantras em tibetano. Alistair apenas encarava o lago. E sussurrou:

— Está começando.

O drone Charybdis foi lançado à água. Sua câmera noturna avançava lentamente pelo negrume líquido. De repente, um som de batida surda ecoou pelo rádio. Algo havia colidido com ele. A imagem tremeu, depois estabilizou. Então surgiu a imagem.

Um rosto.

Não humano. Alongado. Coberto de algo que parecia escamas e musgo ao mesmo tempo. Dois olhos negros como poços sem fundo. E uma boca… uma boca que se estendia até onde o drone não conseguia captar.

O canto cessou abruptamente.

A tela ficou preta.

E, na margem, flutuando como uma oferenda recém-nascida, havia um novo corpo.

Dessa vez, era de um menino.


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