Volume I - O Abismo de Ness

 

Capítulo 7 — O Farol Quebrado

    A travessia o farol da Ilha não estava nos planos imediatos da dupla, mas com a descoberta da fita cassete com o arquivo de 1976, da caverna ritualística, e com o que quer que fosse que estava caçando os dois, Helena sabia que não havia mais margem para recuos. O Instituto seria informado, sim — mas não agora. Nem Otávio, em sua fragilidade crescente, seria afastado. Ela precisava dele lúcido, orientado, com os olhos voltados para onde a razão desabava.

O farol parecia ter sido desativado há vinte anos, oficialmente por conta de sua estrutura comprometida. Haviam alguns equipamentos que pareciam ter sofrido com o tempo.

— Se o Marcus estivesse aqui ele colocaria isso para funcionar rapidamente. – Disse Helena

— Ah, obrigada por me levar em consideração. – Disse Otávio tentando parecer o mais magoado possível.

— Mas não temos nada que possa gerar energia. – Disse Helena olhando em volta.

— Temos o motor da lancha, ou o que restou dele. – Disse Otávio.

— Está escurecendo, não é seguro sair com aquela coisa nos esperando.

Otávio assentiu, onde for que os parceiros deles estivessem precisariam esperar, bem como a leitura do conteúdo daquela fita.

    A noite caiu como um manto de chumbo. No interior do farol, o frio parecia vir de dentro das paredes — não térmico, mas simbólico, como se as pedras lembrassem tudo o que haviam testemunhado. Helena e Otávio improvisaram uma espécie de acampamento no nível térreo, onde a umidade não era tão opressiva quanto nos andares superiores. A fita cassete, agora protegida por um saco estanque, repousava sobre uma manta improvisada ao lado do gravador que Helena encontrara entre os destroços da lancha.

— Precisamos de energia mínima para ouvir isso. — disse ela, fitando o gravador como se ele próprio contivesse as respostas que temia encontrar.

Otávio apontou para o gerador manual que retiraram da lancha antes do naufrágio.

— Pode não aguentar muito tempo, mas deve bastar para uma execução rápida. — Ele olhou para Helena com seriedade incomum. — Estás pronta?

Helena assentiu.

Otávio girou a alavanca lentamente. O gerador chiou, hesitou... e finalmente, uma luz tênue acendeu no gravador. O botão de "play" foi pressionado. E a voz emergiu.

Era masculina. Envelhecida. Grave como o tempo.

"Arquivo de Feldman, julho de 1976. Expediente 13 — Interferência aquática de padrão Kalgh’ra. Local: lago Komsomolets, região ártica russa. Hipótese de entidade submersa de estrutura fluida-memética. Os sintomas incluem: perda gradual da identidade linguística, dissociação entre mente e corpo, e contato com memórias que não pertencem ao sujeito. Repito: memórias que não pertencem ao sujeito."

Helena e Otávio trocaram um olhar gélido.

"Após trinta e quatro horas de exposição à pulsação central, o sargento-chefe Burakov pronunciou a palavra ‘Kalgh’ra’ em alfabeto fonético turaniano, nunca antes registrada em sua experiência pessoal ou em qualquer documento acessado. Ele... morreu sorrindo."

A gravação apresentou ruído. Então continuou, num tom mais urgente.

"Se estás ouvindo isso, não mergulhes. Não busques os olhos que piscam sob a lama. Eles te verão de volta. E se virem... lembrarão."

Ruído. Fim da gravação.

Silêncio.

Otávio respirava com dificuldade. Helena fechou os olhos, engolindo em seco. Aquele aviso não era apenas um registro. Era um testamento. Um pedido de contenção.

Do lado de fora, o vento soprou mais forte, lançando detritos contra as janelas quebradas do farol. Uma rajada mais intensa fez a estrutura tremer. Mas não foi o som da tempestade que gelou o sangue de ambos. Foi outro.

Passos.

No andar de cima.

Lentos. Deliberados. Como se alguém — ou algo — caminhasse sobre o metal corroído com o peso de séculos.

Helena empunhou a lanterna. Otávio pegou a espingarda. Não disseram nada.

Subiram.

Cada degrau parecia um lamento. Cada rangido, uma advertência.

Ao alcançarem o patamar da sala da lanterna, não encontraram ninguém. Mas havia algo ali.

Marcas.

No vidro empoeirado, uma mão — grande demais para ser humana — havia desenhado um símbolo com umidade recente. O mesmo símbolo encontrado na caverna submersa. Círculo. Espirais. Três linhas.

E sob ele, rabiscada em sangue seco, uma palavra:

“Abrir.”

Helena sentiu o farol vibrar. Não fisicamente — mas em um nível mais profundo. Como se o lugar inteiro estivesse esperando um gesto, um ritual, uma aceitação.

— Eles não querem apenas contato — murmurou ela. — Eles querem passagem.

— E Harding... — sussurrou Otávio. — Talvez ele já tenha aberto algo que não devia.

Na escuridão do lago, uma nova luz surgiu. Não do farol, mas das águas — uma pulsação âmbar, ritmada, como um coração prestes a nascer.

Kalgh’ra não apenas despertara.

Kalgh’ra agora chamava.

 


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