Volume I - O Abismo de Ness
Capítulo 4 – Fragmentos Submersos
A superfície do Lago Ness refletia um céu cinzento, denso e
imóvel como chumbo líquido. A embarcação da agência flutuava quase sem
movimento sobre a água espessa, como se temesse perturbar um antigo pacto de
silêncio firmado com o abismo. Helena ajustou o traje de neoprene enquanto
Marcus revisava pela última vez os comandos do guincho que levaria Alistair até
a profundidade onde os sensores detectaram a anomalia.
— Confirma o ponto? — perguntou Marcus, sem desviar os olhos
do tablet.
— Trinta e sete metros abaixo da superfície. Estrutura
estável, temperatura fora do padrão para essa profundidade. — Helena respondeu
com a voz tensa. — E pulsos eletromagnéticos intermitentes. Parece... vivo.
Alistair Harding terminou de prender os cintos do traje de
mergulho reforçado. A câmera no ombro esquerdo já transmitia para os monitores.
Mesmo com as luzes de segurança e o treinamento impecável, ele hesitava ao
encarar o breu sob a quilha.
— Algo não parece certo — murmurou ele, quase para si.
Helena o ouviu. Aproximou-se e apoiou a mão no braço do
colega.
— Se em algum momento quiser abortar, tu nos avisas. Ninguém
aqui está interessado em heroísmo cego.
— Não é medo — respondeu Alistair. — É... pressentimento.
Como se essa água lembrasse de quem a tocou.
Otávio, do outro lado da embarcação, riu com nervosismo.
— E lembrar não é o problema. O problema é se ela guarda
rancor.
O mergulho começou pouco depois das 9h47. Alistair desceu
lentamente, amparado pela estrutura metálica que o guiava até a zona escura. As
luzes frontais iluminaram cardumes dispersos e colunas de sedimentos em
suspensão. Logo, a vida marinha sumiu — como se recuasse. E então, surgiu.
A estrutura.
Não era rocha. Não era barco naufragado. Era algo esculpido,
talvez por mãos humanas, talvez não. Formas angulares, colunas marcadas por
padrões circulares e uma grande porta parcialmente entreaberta. No topo,
símbolos que nenhuma base de dados conseguiu identificar — semelhantes ao
celta, mas com contornos que lembravam olhos sobrepostos, ou mandíbulas se
fechando.
— Transmissão limpa — informou Marcus. — Estás bem?
— Sim — respondeu Alistair. — A temperatura caiu cinco graus
em vinte segundos, mas a estrutura parece estável. Vou me aproximar.
Helena estreitou os olhos ao monitor. Algo nas colunas
parecia... pulsar. Como veias antigas recebendo um sopro de sangue esquecido.
A câmera de Alistair captou fragmentos gravados nas paredes
internas da entrada. Rostos alongados. Olhos duplos. Corpos nadando em
espirais. Havia algo ritualístico, mas sem origem definida.
— Estou entrando — disse Alistair.
— Trinta segundos, Harding. Não estende. — alertou Helena.
No interior, o santuário revelava um piso circular, rachado
no centro, como se algo tivesse irrompido de dentro. O chão estava coberto por
um limo escuro e espesso, mas por entre as frestas, pequenas esculturas podiam
ser vistas. Criaturas anfíbias, metade homem, metade fera. Havia dezenas delas,
todas voltadas para o centro da câmara, como em adoração.
E então, o som.
Não vinha da câmera. Não vinha do rádio. Helena o ouviu
diretamente, dentro da cabeça. Um som grave, arrastado, como um coral profundo,
entoando palavras que a língua humana jamais traduziu.
Marcus olhou ao redor.
— Tu... tu ouviste isso?
Helena assentiu, pálida. Até Otávio caiu no banco, segurando
a cabeça.
No visor, Alistair parou.
— Tem algo aqui. Atrás da coluna. Algo... grande.
A câmera virou, revelando uma figura coberta por limo,
semi-incorporada à pedra. Era uma estátua, pensaram por um segundo. Uma mulher
de feições longas, olhos múltiplos empilhados como escamas. Um colar com dentes
longos pendia sobre o peito nu, e os braços estavam cruzados em uma prece
invertida.
— É... bela — disse Alistair, em um sussurro reverente.
— Volta, Alistair. Agora. — ordenou Helena.
— Ela me viu.
A imagem tremeu. A estátua piscou. O chão tremeu. O som
retornou — não mais como canto, mas como grito.
Helena gritou no convés.
Marcus tentou puxar o cabo do guincho manualmente.
— Temos perda de sinal. Pressão instável!
O retorno de Alistair à superfície foi caótico. Ele emergiu
em estado de choque, com a pele das mãos arranhada e os olhos abertos demais.
Não falava. Não piscava. Foi sedado e levado para o centro médico.
Na filmagem recuperada, a última imagem era a estátua com um
sorriso novo nos lábios. A noite caiu sobre Loch Ness como um manto pesado.
Nenhum som de motor, ave ou vento se ouvia. Era como se o lago inteiro
prendesse a respiração.
Na enfermaria improvisada dentro da embarcação, Alistair
permanecia deitado, os olhos abertos, fixos no teto, sem piscar. Os batimentos
cardíacos estavam estáveis, mas a expressão facial era perturbadora: uma
mistura de choque absoluto e encantamento silencioso.
Helena sentou-se ao lado da maca, segurando a prancheta com
os dados do mergulho. Ainda não conseguia decifrar os símbolos da câmara
submersa, mas algo dentro dela dizia que era melhor assim.
— Ele está ouvindo alguma coisa — disse Marcus,
aproximando-se com o tablet em mãos. — As ondas cerebrais dele estão...
sincronizadas. Como se estivesse captando uma frequência contínua.
— Ele fala? Reage a som, luz...? — perguntou Helena.
— Não. Mas os sensores registraram microcontrações
musculares nos lábios. Como se... sussurrasse. Para alguém. Ou algo.
— E a gravação da câmera?
Marcus hesitou.
— Assisti cinco vezes. A figura que chamamos de “estátua”
moveu os olhos. Claramente. Mas só a câmera registrou. Ao vivo, Alistair não
parecia ver isso com medo. Parecia... compreender.
Otávio entrou no cômodo, com os olhos fundos e expressão
pálida. Trazia uma garrafa de água esquecida nas mãos.
— Não consigo dormir. Fiquei ouvindo passos no convés. Mas
não tem ninguém lá em cima. E o lago... está calmo demais.
Helena franziu o cenho.
— Alguma mudança no sonar?
Marcus confirmou.
— Sim. Pequenas perturbações. Como se... várias formas
estivessem se movendo nas bordas do sonar, mas sumissem antes de completar o
rastreio.
Helena se aproximou de Alistair, abaixando-se para ficar na
altura dos seus olhos.
— Harding. Se estás me ouvindo, pisca uma vez.
Nada.
— Se a estátua te mostrou algo... se ela te falou algo...
precisamos saber.
Lentamente, sem mover a cabeça ou o corpo, os olhos de
Alistair piscam uma vez.
Otávio recuou imediatamente. Marcus quase deixou cair o
tablet. Helena se manteve firme.
— Vou repetir. Ela te falou alguma coisa?
Uma nova piscada.
— Querias ir até lá... ou foste chamado?
Três piscadas.
Helena gelou. Alistair não tinha perdido o controle. Ele
estava respondendo com um código. Uma linguagem binária que lembrava
comunicação controlada, quase ritual.
Do lado de fora, o lago borbulhou discretamente. Marcus
correu até o monitor. Linhas de leitura começaram a subir em sequência.
— Algo está se aproximando do casco. Três... não, quatro
pontos distintos. Movimento ascendente!
O casco rangeu.
Helena correu para a escotilha lateral e puxou a tranca. Lá
fora, o nevoeiro estava espesso demais para enxergar mais de dois metros. Mas o
som era claro: algo deslizava na água, raspando metal.
Otávio armou a espingarda de emergência.
— Nós deveríamos ir embora. Isso não é mais ciência. Isso é
culto, possessão... ou coisa pior.
— Não vamos sair sem entender o que está acontecendo com
Alistair — respondeu Helena. — E se os pulsos estão vindo da estrutura, talvez
possamos...
Um alarme cortou a conversa. O tablet de Marcus piscava em
vermelho.
— Interferência eletromagnética direta. Sistema de navegação
comprometido. Estamos sem propulsão auxiliar.
Do leito, Alistair moveu o pescoço lentamente, olhando
diretamente para Helena.
Então, sussurrou.
— Ela acordou. E quer mais do que um. Quer... todos nós.
O som não saiu pelos lábios. Saiu do rádio, como se o
próprio sistema de comunicação fosse um canal para aquela voz. Os aparelhos
estalaram com chiados graves. Na frequência de emergência, uma única palavra
repetia-se em looping:
— Kalgh’ra... Kalgh’ra... Kalgh’ra...
Helena recuou, coração disparado. Sabia que aquilo não era
latim, nem celta, nem gaélico. Mas o cérebro preenchia o vazio com significado:
invocação. Chamado. Despertar.
Do casco, o som de unhas ou garras arranhando a parte
inferior da embarcação fez Otávio mirar sem ver. Helena correu para a ponte.
— Temos que nos mover agora. Vamos ativar o motor de
emergência manual, cortar os cabos de ancoragem e sair do lago. A investigação
continua depois.
Marcus hesitou.
— E a estrutura?
— Vai continuar onde está. Por enquanto.
Alistair sorriu.
Um sorriso estranho, com dentes demais. E olhos que... não
pareciam mais dele.
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