Volume I - O Abismo de Ness

 


Capítulo 3 – Reflexos do Abismo

A chuva começou fina, quase tímida, como se pedisse permissão para cair. Em minutos, o céu sobre Loch Ness se transformou numa abóbada cinzenta e pesada, onde nuvens carregadas se amontoavam como vultos suspensos. O lago, em resposta, deixou de ser espelho e passou a ser poço — negro, sem fundo, sem retorno.

 

A van tremia sob o impacto das rajadas de vento. No interior abafado, o silêncio dos caçadores era mais denso que o ar.

 

Marcus observava os gráficos na tela com olhos secos e mãos trêmulas. A curva de ressonância captada na pele do garoto morto continuava se expandindo mesmo após a remoção do corpo. O fenômeno parecia irradiar da carne, ou de algo que se alojara nela. Alguma entidade que recusava ser esquecida.

 

— Isso não é apenas resíduo energético — disse ele, em voz baixa. — É como se o corpo estivesse reproduzindo um canto. Uma frequência. Um pedido de entrada.

 

— Ou uma convocação — completou Tashi, sentada de pernas cruzadas, cercada por talismãs dispostos em círculos concêntricos. — Há ecos que não se formam sozinhos. Alguém precisa responder.

 

Helena fitava o lago com os olhos semicerrados. O rosto tenso, úmido pela chuva que invadia pelas frestas. Pensava nos rostos que surgiram na água — as imagens fugazes de agonia e loucura. Havia nelas uma coerência, um padrão de dor repetida. Como se cada alma ali presa revivesse eternamente o mesmo momento de desespero.

 

— Ele quer ser lembrado. O que quer que esteja ali embaixo, foi esquecido tempo demais — murmurou.

 

Do lado de fora, Alistair Harding andava lentamente pelas margens. Seus passos seguiam uma cadência estranha, como se ecoassem um ritmo antigo. Em sua mão, segurava um medalhão enferrujado, preso a uma corrente quase desfeita. Um presente de seu avô, que sempre dissera: “O lago só mostra o que ele deseja que vejas.”

 

E agora, o lago mostrava tudo.

 

A água borbulhava em pontos específicos, mesmo sem corrente visível. O que era antes uma superfície calma tornava-se um tabuleiro de presságios. A vegetação às margens murchava em círculos, como se algo sugasse a seiva da vida do próprio solo.

 

— Isto é um santuário profanado — disse Alistair ao se aproximar da equipe. — Mas não nosso. Nós é que o invadimos.

 

Otávio, do interior da van, ativou o sonar portátil. As ondas emitidas retornaram quase de imediato, como se estivessem sendo repelidas.

 

— Há um vazio sob a água, a cerca de trinta metros. Um espaço onde o som se apaga. Não reflete, não desvia. Some.

 

Marcus se levantou com um sobressalto.

 

— Um ponto cego?

 

— Mais que isso. Uma negação física. Como se o lago negasse que ali exista algo.

 

— Ou como se algo ali negasse o próprio lago — completou Helena, o cenho franzido. — Algo que quer ser esquecido.

 

Tashi se levantou e caminhou até uma das caixas de equipamentos. Retirou uma máscara ritual, esculpida em madeira negra e pintada com sangue de boi. Suas feições eram distorcidas, metade homem, metade peixe.

 

— Vocês não entenderam ainda. Isso não é uma entidade isolada. É um panteão adormecido. E Ness... Ness é só o arauto.

 

O vento soprou com violência, arrancando a porta lateral da van com um estalo ensurdecedor. As folhas de papel voaram como aves desesperadas. Os dados, os mapas, as coordenadas, tudo se espalhou. Mas o grupo não se moveu. Seus olhos estavam fixos na água.

 

Algo se ergueu na superfície.

 

Não era a criatura. Ainda não. Era uma forma menor. Humana.

 

Uma mulher.

 

Seu vestido flutuava ao redor do corpo, rendado e antigo, como tecido de noiva afogado há séculos. Os cabelos longos, escuros e desgrenhados ocultavam parte do rosto. Mas quando ela se virou, revelou-se sem olhos. Apenas cavidades fundas e escuras. E, mesmo assim, ela olhava.

 

Tashi deu um passo à frente, os olhos marejados.

 

— É a Guardiã — disse em tom reverente. — A ponte entre a carne e o fundo.

 

A mulher apontou para o centro do lago e depois para Alistair. A mensagem era clara.

 

— Alguém deve descer — disse Helena, num fio de voz. — E não voltará o mesmo.

O reflexo da mulher sem olhos persistia na superfície do lago mesmo depois que seu corpo afundou lentamente, como se a imagem recusasse desaparecer. Ela afundava sem ondular a água ao redor, como se fosse feita de bruma ou memória.

 

Alistair sentiu o peso do chamado no próprio estômago. Uma âncora invisível o puxava para a margem, para dentro da água, para dentro de si. Aquilo que esperava abaixo parecia conhecê-lo — ou reconhecer nele um elo antigo.

 

— Eu vou — disse, a voz baixa mas firme. — É a minha terra, a minha maldição.

 

Ninguém o contestou de imediato. Helena, de braços cruzados, apenas assentiu. Era a única entre eles que compreendia a natureza dos pactos silenciosos. Tashi se ajoelhou no chão, traçando símbolos no barro úmido com os dedos encharcados. Estava preparando a proteção que, ela sabia, talvez apenas retardasse o inevitável.

 

Otávio retirou um traje de mergulho selado da van. Equipamento padrão para submersões perigosas, com reforço térmico e cápsulas de oxigênio de longa duração.

 

— Se for mesmo, vá com isso. Mas tem mais: essa câmera — ele entregou um pequeno visor acoplado ao capacete — grava tudo. Quero saber o que veremos pelos teus olhos, caso tu volte cego.

 

Alistair não sorriu. Apenas vestiu o traje com uma lentidão quase cerimonial. Cada zíper parecia um voto. Cada fivela, uma sentença.

 

Enquanto se preparava, Marcus voltou ao equipamento de monitoramento.

 

— O vazio continua lá. Trinta metros de profundidade. Mas agora... parece maior. Como se se expandisse com a nossa presença.

 

Tashi não ergueu os olhos. Continuava traçando símbolos no chão, mas agora murmurava algo em um idioma ancestral. Era uma prece dos Bon, uma invocação para que os portais permanecessem abertos... apenas o suficiente para que se pudesse retornar.

 

Helena, por fim, aproximou-se de Alistair. Seu olhar duro suavizou por um instante.

 

— Se encontrar algo lá embaixo, não tente lutar. Não tente entender. Apenas sinta. A verdade, às vezes, vem como febre.

 

Ele assentiu, sem palavras.

 

A entrada na água foi silenciosa, mas solene. O lago pareceu aceitar Alistair com um suspiro, como se abrisse os braços para um filho perdido.

 

Os primeiros metros foram densos, turvos, como se nadasse por lembranças. Alistair via sombras se moverem ao redor — não peixes, mas formas alongadas, tremeluzentes, que desapareciam ao serem observadas diretamente. Ele continuou descendo.

 

O visor marcava vinte metros. Depois vinte e cinco. Depois trinta.

 

O ponto cego se aproximava.

 

Então, tudo escureceu.

 

Não era a ausência de luz. Era outra coisa. Um apagamento. A realidade parecia recusar-se a continuar naquele lugar.


 

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