Volume I - O Abismo de Ness
Capítulo 2 – Ecos nas Águas
O corpo do menino foi retirado da água com extremo cuidado,
ainda envolto por longas fitas de algas que se agarravam à sua pele como dedos
possessivos. Marcus vestia luvas pretas e mantinha o olhar fixo na criança,
como se quisesse encontrar nos traços rígidos do rosto algum sinal de vida que
ele já sabia que não existia. Os olhos do garoto estavam abertos, fixos no céu
turvo da Escócia, e o branco dos olhos havia se tornado quase translúcido. As
pupilas eram apenas um traço negro e vertical, como os de um felino.
— Não parece afogado — murmurou Helena, abaixando-se ao lado
de Marcus. — Sem espuma nas narinas, sem distensão abdominal, sem cianose
visível. O corpo não parece ter sido agredido por nenhum predador nem por
detritos. Está… limpo.
— Demais pra ser natural — respondeu Marcus. — Foi banhado.
— Cerimonial? — sugeriu Otávio, ligando os sensores sobre a
mesa de necroanálise portátil. — Ritualístico?
— Sim — confirmou Tashi, aproximando-se com passos
silenciosos. — Na tradição druidista perdida, os corpos oferecidos ao "Ser
das Profundezas" eram purificados com água de três fontes: nascente, chuva
e nevoeiro. Aqui, só temos chuva e nevoeiro. Mas talvez… isso seja suficiente.
Helena olhou para ele, séria.
— Estás dizendo que houve um ritual nos moldes de um culto
celta extinto há milênios?
— Estou dizendo que as coisas antigas não morrem. Só se
escondem. O lago é um túmulo de eras — completou Tashi, com a voz carregada.
Enquanto Helena colhia amostras das mucosas oculares, Otávio
ativava a varredura bioenergética. A tela tremulou. Linhas de interferência
magnética cruzaram o visor.
— Temos atividade eletromagnética incomum — disse ele. —
Algo na epiderme está... irradiando. Está ativo.
— Ainda vivo? — questionou Alistair, que permanecia em
silêncio desde a chegada do corpo.
— Não... mas também não exatamente morto. Ou não do jeito
convencional.
Uma súbita explosão de estática interrompeu a leitura, e
todos recuaram instintivamente. O corpo do menino tremeu.
Por um segundo — apenas um — ele soltou um pequeno jorro de
água pela boca. Como se algo dentro dele lutasse para sair. Ou para entrar.
— Parem as leituras — ordenou Helena. — Colocá-lo em isolamento
térmico e simbólico. Agora.
Marcus retirou de um compartimento da van um conjunto de
selos gravados em obsidiana. Posicionou-os ao redor da maca. Cada um deles era
gravado com um símbolo de interdição, desenhado por monges romenos e reforçado
por encantadores de Tóquio. Na Quimera, o misticismo e a ciência andavam de
mãos dadas.
Enquanto isso, Otávio revisitava as imagens captadas pelo
drone antes da pane. Ampliou o quadro do rosto. A criatura não era uma simples
projeção folclórica. Os detalhes morfológicos — a membrana entre os olhos, o
padrão de escamas, a assimetria mandibular — indicavam uma estrutura biológica
complexa, mas não terrestre.
— Não é um criptídeo comum — sussurrou Otávio. — Isso...
isso pode ser um anfitrião. Um tipo de ser que carrega, ou controla, entidades
de outros planos.
Alistair se aproximou e pôs a mão no ombro de Otávio.
— Há muito tempo, povos antigos falavam de "guardadores
das passagens". Seres que vivem entre o mundo físico e o abismo onde as
coisas esquecidas dormem. O que vocês viram não é a criatura. É a porta.
Todos se entreolharam.
Do lado de fora, a névoa havia retornado. E com ela, as
vozes.
Mas agora, havia uma quarta. A quarta voz não parecia
humana.
Ela vinha com o vento, distorcida como uma gravação antiga
executada ao contrário. Era baixa, mas presente. Não exigia atenção — tomava-a.
E, embora ninguém pudesse decifrar exatamente o que dizia, todos sentiram a
mesma coisa: fome. Uma fome antiga, ancestral, faminta não de carne, mas de
presença, de existência.
Marcus largou o selo que tinha nas mãos.
— Vocês ouviram isso?
— Sim — respondeu Helena, pálida. — Mas não com os ouvidos.
Tashi se afastou do círculo. Seus dedos traçaram um símbolo
no ar, uma prece budista de proteção. Mas a linha de energia desenhada se
quebrou antes de se completar. O silêncio que se seguiu foi mais aterrorizante
que o próprio som.
Dentro da van, os monitores começaram a falhar. A imagem
térmica do corpo mostrava picos de calor em pontos específicos — olhos,
garganta, abdômen. Como se houvesse energia acumulando-se nos centros do corpo.
Mas não era vida: era outra coisa.
Otávio tentava isolar a anomalia.
— Isso não é um pico comum. É um campo, mas está se moldando
a estímulos externos. Ele reage ao som, ao toque, até mesmo ao pensamento.
— Isso é impossível — murmurou Helena.
— Mas está acontecendo.
Do lado de fora, Alistair permaneceu imóvel diante do lago.
O velho caçador parecia conversar com o nada. Murmurava frases desconexas em
gaélico antigo, uma língua que nem mesmo ele dominava por completo, mas que
voltava à sua boca como se tivesse sido falada durante toda uma vida esquecida.
— Está acordando — disse. — Ness... é apenas o reflexo. Há
algo debaixo disso. Algo que foi acorrentado. Algo que não deveria ser
lembrado.
Helena saiu da van e foi até ele.
— Quem te ensinou essas palavras?
— Ninguém. Elas vieram. Vieram do fundo.
De repente, uma forte onda chocou-se contra as margens do
lago, ainda que o vento estivesse calmo e não houvesse movimento natural
aparente. A água espumava, e dentro dela, figuras humanas começaram a surgir —
não corpos, mas imagens. Projeções translúcidas de rostos contorcidos pela
agonia.
O grupo recuou, instintivamente.
Tashi, por um impulso desesperado, atirou uma pequena pedra
com runas para dentro da água. O lago reagiu como se tivesse sido ferido: um
som agudo cortou o ar, e as imagens desapareceram, dissolvidas em um estalo
súbito.
Silêncio.
— Está nos testando — disse Marcus. — Isso não é um monstro.
É um jogo. Ele quer saber o quanto resistimos antes de sermos consumidos.
Otávio voltou à análise.
— O campo ao redor do corpo estabilizou. Mas algo se
desprendeu dele.
— O quê? — perguntou Helena.
— Não sei. Talvez... um fragmento. Uma consciência. Uma
lembrança.
A tela da van mudou por conta própria. Imagens começaram a
surgir. Filmagens do drone que não haviam sido salvas. Mostravam uma figura
emergindo da água — não o tradicional plesiossauro do folclore, mas algo mais
humanoide, com tentáculos pendendo do queixo, olhos esféricos sem pálpebras e
uma pele preta como alcatrão, pulsando.
Ela olhou diretamente para a lente.
— Isso foi antes da interferência — disse Otávio,
gaguejando.
— Ele sabia que estava sendo visto — completou Helena. — E
se deixou ver.
Marcus digitava com rapidez. Cruzava os dados com registros
antigos de manifestações lacustres em diversas culturas: os Náyades, os
Kelpies, os Afogados do Nilo... todas entidades que seduziam, afogavam e
substituíam suas vítimas.
Mas esse caso era diferente.
O menino não fora substituído. Fora esvaziado. Como uma
roupa de pele para abrigar algo novo.
— Ele está procurando algo — concluiu Tashi. — Ou alguém.
Alistair virou-se lentamente, a pele do rosto esticada, a
respiração presa.
— Ele está procurando por nós.
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