Volume I - O Abismo de Ness

Capítulo 5 – O Primeiro Escolhido
O silêncio na van era total. O grupo observava Alistair sentado à beira do lago, com o capacete do traje ao lado, os olhos fixos na água como se esperasse que ela falasse com ele. O vapor subia da superfície, e os olhos — agora invisíveis — pareciam ter recuado para as profundezas, embora a presença deles permanecesse suspensa no ar, como um perfume de ferro.
Helena digitava compulsivamente no tablet, tentando cruzar dados sobre a estrutura submersa com relatos antigos. Nenhum deles mencionava o templo. Nenhum deles falava das figuras entalhadas ou da mulher que Alistair jurava ter visto.
Otávio e Marcus permaneciam de guarda, mas sabiam que o que estavam enfrentando não podia ser contido com armas.
— Ele não está com febre — murmurou Marcus, depois de checar Alistair pela terceira vez. — Pulso normal, pressão estável. Mas…
— Mas? — perguntou Helena, sem tirar os olhos da tela.
— Os olhos dele dilataram ao entrar no escuro da van. E… eles não voltaram ao normal desde então.
Helena olhou para Alistair. Seus olhos pareciam dois pontos de breu cercados por um anel de marfim. Era como se o fundo do lago tivesse se fixado em sua retina.
Tashi, sentada em silêncio no fundo da van, segurava um colar de contas de osso. Sussurrava em sua língua nativa.
— O espírito do lago está com ele — disse. — Há um vínculo. Um selo. O templo é um lugar de selamento. E ele tocou a pedra.
Alistair virou-se devagar.
— Eu não toquei. Ela me escolheu.
Todos o encararam.
— Eles me mostraram tudo. O ciclo. A dívida. O que esse lugar é de verdade. — Ele levantou o olhar, com uma calma que não lhe era natural. — Vocês pensam que Nessie é um animal. Mas ela é só a forma visível. Um avatar. A carne daquilo que dorme ali embaixo.
— E o que dorme ali embaixo? — Helena perguntou, já sabendo que não queria ouvir.
— Algo que os antigos reverenciavam. Chamavam de "An Tonn Fhada" — respondeu Alistair. — "A Longa Onda". Não era apenas uma criatura. Era o eco de uma coisa muito mais antiga. Que caiu do céu, feriu a terra, e se misturou com os deuses de pedra e sal. O lago é sua prisão e sua boca.
Otávio trocou um olhar rápido com Helena.
— Ele está delirando — sussurrou.
— Não. — disse Tashi, os olhos arregalados. — Ele está recordando.
Lá fora, o vento se levantou. A água tremeluziu como se algo se movesse por baixo, ainda que não surgisse à superfície. No vilarejo, os rádios começaram a emitir chiados sem comando. Portas se abriram sozinhas. Animais fugiram de celeiros, em disparada para o mato. O lago respirava, e sua respiração atravessava a terra.
Naquela noite, o grupo retornou ao hotel, tentando manter a aparência de normalidade. Alistair permaneceu em silêncio durante todo o jantar. Quando a comida chegou, ele apenas passou o dedo pelos grãos de arroz, desenhando espirais com gestos lentos.
Helena notou.
No quarto dela, naquela madrugada, algo a despertou. Um som molhado. Um arrastar. Levantou-se devagar, pegando sua lanterna. O som vinha do quarto ao lado — o de Alistair.
Ela bateu à porta. Nenhuma resposta. Empurrou devagar.
A luz da lanterna revelou pegadas molhadas indo da cama até a janela, e a janela… aberta.
Alistair estava no telhado.
Sem roupa. Sem medo.
De pé.
Olhando para o lago.
— Alistair?! — gritou Helena.
Ele virou-se devagar, os olhos reluzindo mesmo sem luz.
— Ela me chamou. — Ele sorriu. — A água está mais quente hoje.
Helena o convenceu a descer. Chamou Tashi e Otávio. Eles o contiveram, mas não foi fácil. O corpo dele estava frio e pesado, como se a gravidade já não o afetasse da mesma forma. Como se fosse feito de outra matéria.
Na manhã seguinte, encontraram no vilarejo o corpo de um homem desaparecido havia semanas. Estava boiando perto da margem norte. Quando a perícia chegou, algo chamou a atenção: não havia sinais de afogamento — os pulmões estavam intactos, secos. Mas a pele… a pele estava lisamente desfeita. Como se tivesse sido desmembrada em silêncio.
E gravado em seu tórax, com algo afiado, estavam os mesmos espirais da pedra do templo.
— O que quer que esteja acontecendo — disse Marcus, olhando para a cena do crime —, começou com Alistair. Mas agora... já não depende mais dele.
Tashi, em pé ao lado da equipe da perícia, apontou para o lago.
— O primeiro escolhido sempre é o arauto — disse. — Mas o segundo... é o sacrifício.
Helena sentiu um calafrio.
— E o terceiro?
Tashi olhou para ela.
— O terceiro é sempre o que traz os outros.
Helena se virou para o lago. Um ruído quase imperceptível ecoava de sua superfície.
Como um canto.
Como um convite.

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