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Mostrando postagens de maio, 2025

Volume II: A Boca de Gelo

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  Capítulo Final – Fragmento Vivo Três semanas depois, a Base Borealis fora selada sob gelo permanente, declarada colapsada por “atividade tectônica”. O protocolo de contenção havia sido ativado sem cerimônia. Otávio não retornou à sede da Quimera. Estava internado em um complexo clínico subterrâneo da Seção Hermes, destinado a agentes expostos a interferência psíquica de classe 5 ou superior. Segundo os relatórios, ele ainda murmurava nomes esquecidos enquanto dormia. Nomes que não apareciam em dicionários. Mas que o gelo conhecia. Helena, por sua vez, desaparecera. Não havia registros de voo. Nenhuma movimentação eletrônica. Seu comunicador foi encontrado desligado, enterrado sob a neve, a dois quilômetros da costa de St. Lawrence Island. O Instituto a declarou desertora de nível especial. Mas nem todos acreditaram nisso. Na noite de 3 de fevereiro, uma sonda de monitoramento da costa canadense captou uma imagem. Uma mulher, vestindo traje térmico negro, caminhava sozinha sobre o...

Volume II: A Boca de Gelo

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  Capítulo 5 – A Memória Encarnada O tempo parou. Ao redor de Helena, os corpos nos casulos de gelo abriram os olhos em uníssono. Cada um deles era uma imitação perfeita. Uma Helena. Um Otávio. Um Marcus. Suas feições respiravam, mesmo sem pulmões. Os olhos, idênticos, estavam vazios — mas famintos de história. De existência. Amikuk não era um predador. Era um repositório. Um arquivo vivo. E Helena... era a porta de leitura. Ela ajoelhou-se diante da Boca, as mãos trêmulas estendidas. O braço principal da criatura tocou sua testa — gelado, mas pulsante. Uma descarga atravessou sua espinha. Imagens. Sensações. Cidades submersas. Povos desaparecidos. O mar preto. O gelo vermelho. A escuridão profunda onde o tempo se dobra. Memórias que não eram dela. Mas agora... seriam. Otávio tentou impedir. — Helena! Pensa no que estás fazendo! Ela não respondeu. Porque não havia mais tempo para palavras. A criatura enraizou parte de si sobre a coluna de Helena. Não foi um ataque. Foi...

Volume II: A Boca de Gelo

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  Capítulo 3 – Os Que Vestem a Pele As luzes da Base Borealis piscaram com um estalo elétrico. A temperatura caiu quatro graus em menos de um minuto — sem alteração externa. Era como se algo sugasse o calor de dentro, como se o frio estivesse sendo exalado pelas próprias paredes. Otávio trancou os corredores com os selos físicos de contenção, camadas de aço magnetizado reforçadas com códigos cerimoniais da Seção Tibetana da Quimera. Aquilo havia contido um hospedeiro de Kalgh’ra, pelo menos temporariamente. Mas com Amikuk... eles não sabiam o que enfrentavam. Helena mantinha a espingarda apontada para a entrada. O som das batidas cessara. Mas agora... eram passos. Múltiplos. Arrastados. Não sobre a neve — sob ela. O chão vibrou como se pulsasse. E então uma rachadura surgiu na parede lateral da base. Pequena. Mas suficiente para vazar um cheiro intenso e orgânico: alga, gelo antigo... e sangue. Helena se aproximou e apontou a lanterna pela fissura. O que viu era impossível. Um rost...

Volume II: A Boca de Gelo

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  Capítulo 4 – A Boca sob o Gelo A escotilha de aço rangeu quando Helena e Otávio cruzaram o limiar entre o mundo humano e o ventre do gelo. As luzes dos capacetes cortavam a escuridão, revelando paredes compactadas por séculos de pressão. Não era uma caverna comum — era um canal esculpido. Orgânico demais. Curvado demais. Como se algo tivesse passado... muitas vezes. O caminho descendia por rampas de gelo polido. As superfícies apresentavam marcas circulares, como ventosas disformes pressionadas com força desumana. De tempos em tempos, Helena tocava o gelo com o microcoletor e observava os dados. — Altas concentrações de amônia. Traços de queratina... e melanina — ela disse. — Isso aqui foi tocado por algo vivo. Grande. Muito grande. Otávio caminhava ao lado, monitorando os sinais neurosinápticos captados pelos gravadores mentais. O traçado estava limpo. Mas o próprio aparelho indicava algo estranho: havia outro campo de leitura cerebral na área. — Estás vendo isso? — pergun...

Volume II: A Boca de Gelo

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  Capítulo 2 – Os que Rastejam sob o Gelo A superfície congelada do Estreito de Bering refletia a luz tênue dos drones como espelho rachado. O silêncio era espesso, quebrado apenas pelo zumbido das hélices e pelo estalido rítmico das fissuras se movendo sob as rodas da sonda térmica. Helena e Otávio observavam os monitores em tempo real. O novo modelo de drone — Charybdis II , uma versão adaptada para escavação e leitura sísmica de camada profunda — avançava a 70 metros do ponto de fratura central. As imagens transmitidas mostravam gelo maculado. Como se algo tivesse derretido o interior e depois o reconstruído. — Isso aqui... não é fusão natural — murmurou Otávio, ampliando um dos registros. — São túneis. Ramificados. Curvos demais para serem rachaduras. E há escoriações. Como se... algo tivesse rastejado por dentro. Helena não desviava os olhos da imagem. O interior dos canais era escuro, mas reflexos visíveis marcavam algo metálico, como secreções minerais. Porém, o detalhe ...

Volume II: A Boca de Gelo

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  Capítulo 1 — Ecos de Sangue Frio O silêncio do Ártico era diferente. Não era ausência de som. Era expectativa congelada. A Base Avançada Borealis, um laboratório multinacional desativado na fronteira do Estreito de Bering, fora reativada com urgência após o desaparecimento de uma equipe científica russa que estudava fraturas sísmicas sob a calota glacial. Transmissões interrompidas. Um único áudio recuperado: “Eles nadam por baixo... mas sob o chão. Não é água. É gelo. E ainda assim... se move.” Helena pousou o tablet devagar, olhos semicerrados pela luz azulada do ambiente. O frio era cortante, mas não tanto quanto o medo que sentia ao ouvir aquele tom: o mesmo vazio desesperado de quando viram Marcus ser tomado. Otávio, agora mais pálido, mais magro e com marcas permanentes sob os olhos, entrou na sala de comando com o relatório meteorológico. — Estão falando em colapso parcial da plataforma oeste. Mas é mentira — disse ele, jogando os papéis sobre a mesa. — O gelo não ...

Volume I - O Abismo de Ness

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  Epílogo – O Vigia do Abismo O tempo na Escócia passou. Chuva. Turistas. Folclore reaproveitado como comércio. O Instituto selou os relatórios. A Agência Quimera silenciou os arquivos. E Helena, isolada em uma base remota no norte da Noruega, revisava a cada noite as imagens da missão. O colar de vértebras pendia sobre seu pescoço. Um lembrete. Um aviso. Foi numa madrugada que ela recebeu a mensagem. Sem remetente. Sem origem. Apenas um vídeo. O arquivo se abria com uma filmagem instável. Uma câmera presa ao ombro de um traje de mergulho. O nome no canto inferior: Harding-Δ_arquivo não classificado . A imagem mostrava o fundo do lago — a mesma estrutura, os mesmos pilares antigos. Mas o santuário agora estava... vivo. Respirava. As paredes pulsavam. O limo se movia. E no centro da câmara, sentado sobre uma elevação de pedra negra, estava ele. Harding. Nu da cintura para cima, a pele marcada por símbolos em espiral. Seus olhos não eram mais os dele. Mas também não eram de Kalgh’ra....

Volume I - O Abismo de Ness

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  Capítulo 11 – O Corpo da Lenda A manhã na Escócia nasceu sem cor. O céu era um espelho opaco, e o lago, um vidro sem reflexo. Helena acordou com o cheiro da terra molhada. Estava sozinha, mas não desorientada. Sabia o que havia ocorrido — e o que ainda não terminara. Kalgh’ra havia recuado, mas não desaparecido. Ele dormia, como dormem os deuses vencidos: à espreita. Ela seguiu a trilha costeira em direção ao vilarejo mais próximo. No caminho, cruzou com homens da guarda local, que haviam detectado a explosão eletromagnética da noite anterior. Não os reconhecia, e tampouco confiava. Mas precisava de acesso à estação de pesquisa meteorológica — era o único lugar com sinal para contatar o Instituto. No laboratório improvisado, Helena cruzou os dados do sonar residual com os mapas geotectônicos do lago. E então viu. Uma estrutura óssea. Um crânio. Gigantesco. Encravado sob a base do lago, a 82 metros de profundidade, envolto em sedimento e limo milenar. O sonar o registrava...

Volume I - O Abismo de Ness

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  Capítulo 10 — O Quarto Selo O canto da terceira voz não soava como música, mas como uma distorção de tempo. Cada nota era uma dobra. Cada palavra, uma rachadura na realidade. E Helena sabia — ainda que não compreendesse como — que o ciclo estava completo. Três haviam sido marcados. Três haviam sido moldados. Faltava apenas o quarto. Otávio. Ele caiu de joelhos na margem, agarrando a cabeça com as duas mãos. Não gritava — chorava sem som. Como se o mundo ao redor tivesse deixado de escutar. — Ele está me puxando — balbuciou, trêmulo. — Está me mostrando coisas... que ainda não aconteceram. Helena correu até ele, segurando-o pelos ombros, tentando ancorá-lo no presente. — Não estás sozinho. Fica comigo. Lembra quem tu és. Mas Otávio já não via Helena. Seus olhos estavam voltados para o lago, onde Marcus caminhava lentamente em direção à margem. Atrás dele, a água se abria como se temesse tocá-lo. Ao redor de seu corpo, uma aura âmbar pulsava — o mesmo tom do batimento no ...

Volume I - O Abismo de Ness

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  Capítulo 9 — A Trindade Esquecida      A floresta à margem do lago se fechava ao redor de Helena e Otávio como um organismo vivo. Os galhos, entrelaçados como costelas, abafavam o som do vento. Os pássaros haviam emudecido — ou sido levados. A cada passo, o solo parecia pulsar sob as botas, emitindo uma vibração quase imperceptível que subia pelas pernas como febre rastejante.      A luz âmbar do lago não os alcançava ali, mas sua presença era sentida — como um olho fechado prestes a se abrir.      — Isto não é mais apenas o Lago Ness — murmurou Otávio, analisando os dados térmicos no tablet improvisado. — A frequência que vínhamos rastreando agora está ativa em mais de um ponto... é como se algo estivesse se espalhando sob o solo, como raízes.      — Ou como um coração buscando artérias — respondeu Helena. — E nós somos o sangue.      Avançaram até uma clareira onde as árvores pareciam ter morrido de...

Volume I - O Abismo de Ness

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  Capítulo 8 — O Coração da Água A luz âmbar do lago pulsava em intervalos regulares, como um batimento artificial de algo que não deveria mais ter coração. Não era um reflexo, nem uma bioluminescência. Era um chamado. Um compasso que sincronizava não só as águas, mas as mentes daqueles que o contemplavam. Otávio afastou-se da janela do farol com o rosto pálido. Seus olhos, por um instante, perderam o foco — como se a realidade tivesse oscilado entre duas versões de si mesma. Helena percebeu. — Fica comigo — ela disse, pousando a mão sobre o braço dele. — Não cede. Não olha demais. Ele assentiu, mas sua voz tremia ao responder: — Aquilo... pulsa no mesmo ritmo do meu coração. Como se quisesse... assumir o controle dele. Helena engoliu em seco. A névoa lá fora não apenas se adensava — ela se moldava. Espessava-se em formas quase-humanas, quase-vivas, que se moviam entre as árvores da margem como ecos com carne. Não havia mais fronteira entre o real e o simbólico. Desceram do ...

Volume I - O Abismo de Ness

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  Capítulo 7 — O Farol Quebrado      A travessia o farol da Ilha não estava nos planos imediatos da dupla, mas com a descoberta da fita cassete com o arquivo de 1976, da caverna ritualística, e com o que quer que fosse que estava caçando os dois, Helena sabia que não havia mais margem para recuos. O Instituto seria informado, sim — mas não agora. Nem Otávio, em sua fragilidade crescente, seria afastado. Ela precisava dele lúcido, orientado, com os olhos voltados para onde a razão desabava. O farol parecia ter sido desativado há vinte anos, oficialmente por conta de sua estrutura comprometida. Haviam alguns equipamentos que pareciam ter sofrido com o tempo. — Se o Marcus estivesse aqui ele colocaria isso para funcionar rapidamente. – Disse Helena — Ah, obrigada por me levar em consideração. – Disse Otávio tentando parecer o mais magoado possível. — Mas não temos nada que possa gerar energia. – Disse Helena olhando em volta. — Temos o motor da lancha, ou o ...

Volume I - O Abismo de Ness

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  Capítulo 6 — As Vozes do Fundo A névoa havia se adensado como se tivesse vontade própria. A lancha cortava lentamente as águas negras do lago, a proa iluminada apenas pelo farol pálido que lutava contra a escuridão que parecia engolir toda luz. As ondas pequenas e ritmadas batiam contra o casco como tambores fúnebres, e o motor roncava num tom cada vez mais irregular, como se também fosse afetado pela presença invisível que envolvia tudo.   No convés, Helena, Otávio e Marcos mantinham os olhos fixos na margem oposta — ou onde achavam que ela devia estar. Desde o ataque à casa da família MacAlister, todos os parâmetros da missão haviam sido quebrados. Não era mais uma investigação. Era uma fuga.   — O motor está esquentando demais — anunciou Marcus, com os olhos fixos nos painéis. — Estamos forçando demais com essa névoa densa. Algo está... drenando a energia.   — Isso não faz sentido — rebateu Otávio, apertando o rádio em mãos, ainda tentando sintoniz...